Era uma farmácia em saldos.
Tinha em exposição e mais baratos que o costume os produtos sujeitos a receita médica.
Uns com 20%, outros com 50% de desconto consoante o que se tinha vendido mais e menos durante a temporada normal que acabava agora para dar lugar aos saldos.
Alguns funcionários estavam ao balcão aviando os remédios não sujeitos a saldo, remédios que eram poucos e pouco solicitados. O paracetamol, comercialmente apresentado como Panadol, não estava em saldo porque não era preciso: como era procurado com urgência em situações de dor desesperante continuaria a ser procurado da mesma forma com a mesma dor. Quando a dor lixava, que remédio tinha o dolorido senão comprar alívio rápido que não ataca o estômago. Ainda assim, nesta situação de saldos, verdade seja dita, o Panadol pouco se vendia, porque havia outros produtos, não-analgésicos, em saldos.
Pela primeira vez havia uma farmácia em saldos.
Podia experimentar-se coisas nunca antes experimentadas num ambiente de sensacionismo sensacional que muitas novas sensações proporciosensionava.
Lá a um canto da farmácia havia um espaço TIM - Toma Imediata dos Medicamentos, toda uma oportunidade de partilha de experiências entre os utentes. Era um espaço pequeno, aconchegado, sem grandes alaridos, porque a maioria das pessoas prefere tomar as coisas em casa depois das refeições à hora certa conforme vem na posologia.
Cá fora do balcão, a arrumar as peças, os empregados eram muitos. De bata branca e avental dobravam à velocidade luminosa de modo a que o local estivesse arrumado e apetecível aos olhos de uma vaga sempre nova de clientes.
Farmácia em saldos era uma sucesso que ainda ninguém se havia lembrado.
- Olhe, não tem isto em dose mais baixa, 100 miligramas por exemplo?
- Não, só temos o que está exposto.
- E noutras lojas, haverá?
- É capaz, mas tem de ver as que estão de serviço a partir das 21h que nós aqui não temos acesso. Mas olhe, se quiser pode levar esse pacote que não faz grande diferença do outro, e depois se quiser pode trocar, experimenta em casa e logo vê. Só um momento, por favor. Dora? Vou ao armazém para fazer reposição, já venho.
Diz a mãe para a filha:
- Levo este ou levo aquele? Este é composto por mendricina de solfejo caudal. Qual o melhor? O que achas, Matilde?
- Ó mãe, não sei, decide-te... e não deixes os folhetos informativos aí todos desarrumados, coitadas das senhoras que têm de arrumar isso tudo. Põe isso dentro das embalagens, que confusão. Olha, leva o que te fica... aliás, o que te faz melhor.
O problema de arrumar uma farmácia assim é ter de se ler o título de cada produto para pôr o folheto respectivo em cada embalagem, nas outras lojas não há esse problema. Alguns clientes, para não comprarem as coisas na confusão dos saldos, consumiam o medicamento mesmo ali no local e já iam aviados. Só se sabia que o tinham roubado directamente para o estômago quando alguns desses ladrões espumavam da boca ou outros se coçavam até sangrar. Efeitos secundários das tomas.
Outros havia que tinham ataques cardíacos; outros achavam que ali na farmácia havia alguém que andava atrás deles com uma pistola, de maneiras que se antecipavam ao agressor e, desprovidos de pistola, disparavam em todas as direcções caroços de tangerinas cuspidos com balanço, tangerinas do Continente que não estavam em saldo mas eram biológicas e que, se não as comprassem antes da ida à farmácia, apanhavam-nas já podres.
Farmácia cheia.
Quais os produtos mais saldados? Certo tipo de anti depressivos pouco receitados, de velha geração; além de desinfectantes conais que matam a flora genital e também “cremes gordos para peles gordurosas” e secadores para peles secas.
Mas acha que isto me faz bem? O que é que acha?, pergunta um homem à farmacêutica acerca do anti depressivo raramente receitado e que ele ainda não tinha tomado ou que tinha tomado durante pouco tempo no início do tratamento.
- Bem, é assim – diz a dra. - : ele mal não faz, tem-se até vendido. Os psiquiatras não o receitam muito, é verdade, mas já sabe como é: poucos patrocínios, poucas viagens e vai na volta eles metem sempre estes medicamentos, até jeitosos, para segundo plano. Ainda ontem vendi isto a uma menina que nunca tinha experimentado, os amigos tomavam e ela via-os em forma, bem dispostos, por isso decidiu experimentar. É assim: até agora não temos tido reclamações e até acho, pessoalmente, que para o ano isto vai-se consumir mais, tudo depende da propaganda, é como tudo, tou-le a ser sencera. Se calha cair em graça, cai em graça, é como tudo.
- Ok, eu levo, depois se houver alguma coisa posso trocar, certo?
- Claro, oito dias com a apresentação do talão. Mesmo que o senhor não apareça pode vir cá outra pessoa trocar, se o senhor não puder ou mudar de… ideias.
Gostei
ResponderEliminarfiquei com vontade de experimentar esse anónimo fármaco à base de "mendricina de solfejo caudal"
Quase certo me curava da azia resilente que me afeta