Publico o início do texto para o próximo número da "Nova Águia", numa versão ainda provisória:
Da cultura como ilusão à cultura do despertar de todas as ilusões
Procurando pensar a natureza da cultura, iniciamos a reflexão com um notável parágrafo d’A Origem da Tragédia, transcrito para comodidade do leitor:
“É um fenómeno eterno: sempre a Vontade insaciável, pela ilusão que derrama sobre as coisas, encontra um meio de ligar as suas criaturas à existência e de as forçar a continuar a viver. Este deixa-se fascinar pelo prazer socrático do conhecimento e pela ilusão de poder sanar com ele a eterna chaga da existência; aquele sente-se fascinado pelo véu sedutor da beleza que a arte deixa flutuar diante dos seus olhos; outro deixa-se, por sua vez, seduzir pela consolação metafísica de que, sob o turbilhão das aparências, a vida eterna prossegue o seu curso indestrutível: para não falar das ilusões mais comuns e mais fortes ainda que a vontade é capaz de suscitar a todo o instante. Estes três graus de ilusão são, de resto, reservados às naturezas mais nobres, nas quais o peso e a miséria da existência suscitam um desgosto mais profundo, mas que podem fugir a tal desgosto escolhendo estimulantes adequados. Com tais estimulantes se constituiu tudo o que designamos por civilização: de acordo com o seu doseamento obteremos, preferencialmente, ou uma cultura socrática, ou artística ou trágica, ou melhor, se formos buscar exemplos à história, teremos então ou uma cultura alexandrina, ou helénica ou budista” [1].
Sem avaliar o rigor e justeza desta identificação histórica das formas de cultura, que nos parece problemática, em particular no que concerne a “budista”, interessa-nos fundamentalmente a ideia de que a morfogénese de todos os tipos de cultura (Kultur) obedece a “estimulantes” (Reizmitteln) que permitem iludir o desgosto (Unlust) perante “o peso e a miséria” da “eterna chaga” (ewige Wunde) de uma “existência” (Daseins) à qual os sujeitos são eterna e renovadamente ligados pela “ilusão” (Illusion) que a “Vontade insaciável” (gierige Wille) “derrama sobre as coisas” (Dinge) [2]. Os vários aspectos da cultura, dos mais elaborados e eruditos – filosofia, ciência, arte e religião – aos mais comuns que constituem toda a civilização humana, correspondem assim a vários “graus de ilusão” (Illusionsstufen) onde os homens procuram enganar-se a respeito da sua condição ou ocultá-la a si mesmos, camuflar e esquecer a ferida trágica que os constitui na cisão, na dor e na mortalidade (o verbo hinwegzutäuschen, traduzido aqui como “fugir a”, tem o sentido de enganar alguém a respeito de alguma coisa ou de ocultar alguma coisa a alguém). A cultura e a civilização surgem assim como produtos dessa “ilusão” que a insaciável vontade de viver lança continuamente sobre “as coisas” e como anestésicos desse “desgosto”, ausência de gozo ou desejo (Un-lust) que constitui a natureza paradoxal e autocontraditória da própria vontade de viver. A cultura e a civilização, em todas as suas manifestações, revelam-se assim como um sistema de estímulos, a bem dizer estupefacientes, de cuja ilusão ficam dependentes os sujeitos que neles buscam evadir-se da dor inerente a essa inconsciente e ávida vontade de viver que continuamente os propulsa na ex-istência. Uma embrionária toxicodependência mental/emocional desvela-se assim a natureza íntima da cultura e da civilização que, em busca de se evadir do “mal-estar” que a habita, pois inerente à “vida”, naturalmente segrega múltiplos paliativos, dos mais subtis e internos aos mais grosseiros e externos, socialmente aceites ou não. A droga e a embriaguez seriam inerentes ao processo cultural e civilizacional [3]. Como escreveu Freud: “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. […] Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável” [4].
Se a influência de Schopenhauer é evidente na Origem da Tragédia, a maturação em Nietzsche de um pensamento próprio mantém-no fiel à ideia de que “vivemos num mundo de ilusão”, inerente às meras “perspectivas” interdependentes a que se reduz toda a suposta objectividade das categorias conceptuais que fizeram fortuna na tradição filosófica ocidental: número, tempo, espaço, alma, substância, indivíduos, morte, vida, sujeito, objecto, activo, passivo, causa, efeito, meio, fim. Vivemos assim “graças ao erro” [5], mas “naufragar-se-ia se se quisesse sair do mundo das perspectivas”: “abolir as grandes ilusões já completamente assimiladas destruiria a humanidade” [6]. Segundo o pensador, a “vontade de saber” filosófica e científica volta-se contra essa mesma ilusão vital que é a condição de possibilidade de todo o conhecimento, cujo “grau ínfimo” exigiu o nascimento de “um mundo irreal e erróneo: seres que acreditassem no durável, em indivíduos, etc.”. É apenas sobre o ilusório “fundamento” de um “mundo imaginário”, contrário ao “eterno escoamento”, que se pode construir qualquer “conhecimento” que seja, o qual pode discernir “o erro fundamental sobre o qual tudo repousa”, mas não o pode dissipar senão arrastando nisso a “vida”, pois “a verdade última que é a do fluxo eterno de todas as coisas não suporta ser-nos incorporada; os nossos órgãos (que servem a vida) está feitos com vista ao erro”. “Querer conhecer e querer errar são o fluxo e o refluxo” e “o homem perece” se um deles domina absolutamente. Daí o programa de “amar e favorecer a vida, por amor do conhecimento, amar e favorecer o erro e a ilusão, por amor da vida”. A “arte” deve ser posta “ao serviço da ilusão” [7] vital. Pese a reinterpretação da vontade de viver como vontade de potência, a afirmar e não negar, permanece a recriação schopenhauriana do indiano “véu de Maya” como esse engano originário inerente à vontade e a todas as suas criações [8].
A cultura nasce assim sob o signo da melancolia, como notou Aristóteles a respeito dos “homens de excepção” na filosofia, política, poesia e artes [9], o que nos reenvia ainda para Nietzsche que, como vimos, considera estarem os “graus de ilusão” mais elevados – filosofia, ciência, arte e religião – “reservados às naturezas mais nobres”, mais profundamente desgostosas com “o peso e a miséria da existência”, dos quais se buscam evadir mediante os “estimulantes” mais sofisticados [10]. Como diz Walter Benjamin, “a meditação profunda (Tiefsinn) é sobretudo própria de quem é triste” [11] e a Melancolia apresenta-se, num poema por si citado, como “mãe de sangue denso (schweren Bluts), fardo podre (faule Last) da Terra” [12], cujos termos são muito próximos da descrição nietzschiana do “peso e miséria da existência (Last und Schwere des Daseins)” [13]. O ser-aí, o ex-istir, o ser algo ou alguém numa dada situação no mundo, é melancólico – quer na exaltação, quer na depressão - e a melancólica condição de toda a cultura, que diríamos oscilar na dialéctica maníaco-depressiva entre a ânsia de levitar de todas as condições e o afundamento nessa gravidade íntima ao ex-ist-ente.
(texto em elaboração)
[1] Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, tradução, apresentação e comentário de Luís Lourenço, Lisboa, Lisboa Editora, 2004, p.152.
[2] Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, edição de Karl Schlechta, München, Carl Hanser Verlag, 1966, p.99.
[3] Cf. Ernst Jünger, Drogas, Embriaguez e Outros Temas, tradução de Margarida Homem de Sousa, revisão de Rafael Gomes Filipe e Roberto de Moraes, Lisboa, Relógio d’Água, 2001.
[4] Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur, 1930; O mal-estar na civilização, tradução de José Octávio de Aguiar Abreu, Rio de Janeiro, Imago, 2002, p.22.
[5] Cf. Friedrich Nietzsche, La volonté de puissance, texto estabelecido por Friedrich Würzbach e traduzido do alemão por Geneviève Bianquis, tomo II, Livro III, 584, pp.216-217.
[6] Cf. Ibid., 594, p.220.
[7] Cf. Ibid., III, 582, p.216.
[8] Cf. Id., A Origem da Tragédia, 1, pp.66-67.
[9] Cf. Aristóteles, L’Homme de génie et la Mélancolie. Problème XXX, 1, edição bilingue, tradução, apresentação e notas de J. Pigeaud, Paris, Éditions Rivages, 1988, p.83.
[10] Cf. Friedrich Nietzsche, A Origem da Tragédia, 18, p.152.
[11] Cf. Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão, edição, apresentação e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.147.
[12] Tscherning, “Melancholey Redet selber”, in Ibid., pp.155-156.
[13] Cf. Friedrich Nietzsche, Die Gebürt der Tragödie, 18, Werke, I, p.99.
Inteligente e elucidativo.
ResponderEliminarE bonito!
Mas seguindo este sentido, para o que evoluiria então a Humanidade?
Ainda falta a segunda parte do texto... Porque pressupor uma evolução na humanidade? Talvez a única evolução, a haver alguma, seja a do despertar de todas as ilusões: incluindo a de as haver...
ResponderEliminarRefiro-me a evolução, tal como uma espiga que cresce e se transforma.
ResponderEliminarE dá semente de novo,
mas que jamais retorna ao que era.
Aguardemos então a próxima parte.
Obg e boas inspirações