segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Deixar-se alcançar pela Paz de Espírito

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“O meu padrasto era alfaiate (…). Tinha uma alma profunda, um espírito verdadeiramente mensageiro. Por vezes dizia, sorrindo, que a traição dos clérigos principiara no dia em que um deles representou um anjo com asas: é com as mãos que se sobe ao céu”.

Louis Pauwels

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Há momentos em que a vida nos põe em questão, nos demanda, nos transforma em pasto de chamas, nesse fogo lento do tédio, a monotonia de ter uma voz amestrada num coro composto por muitas aves canoras, demasiado afinado, com um ritmo frio, pardacento, uma mera capa que nos impede de velar: ‘Andar à vela’ é, não só fazer-se ao mar e às incertezas do vento, mas, também, no linguajar popular, estar despido, ver-se sem protecção face ao olhar dos outros.

É uma forma quase involuntária de sinceridade, quando a vida nos despe e nos despoja, espojados no chão, envoltos no pó, entregues a essa mesma solidão essencial que nos expulsa do útero e nos projecta na tumba, a mesma intencionalidade projectada para diante, o mesmo desperdício de energias que serviriam bem para outra coisa mais necessária ao Universo, quem sabe?

E a Paz… é o elemento do Espírito. Elemento que nos expõe a carne viva à ferida sem refrigério: o ter uns olhos para ver; umas mãos para encenar acenos e gestos expressivos a partir de dentro, do âmago do tutano dos ossos, essa mentira de eternidade que desmente os mais empedernidos senhores de si; uns ouvidos para escutar o que na escuta é mais negro que o negrume da noite, e a pele… essa praia de nunca ter embarcado, sempre à flor da vida, presa por um fio invisível à dissolução do contentamento…

Para quê? Perguntá-lo é já perder o sentido da demanda. A vida é assim, poderão responder muitos, ‘é a vida!’… A vida!

Há que pregá-la com pregos de ferro forjado a qualquer madeiro que possa servir de cruz pseudo-redentora, o mais das vezes a árvore maldita é o hábito de julgar, a demoníaca atracção do moralismo. Quem não se descobriu já, auto-eleito Torquemada, a fazer torresmos das falhas dos outros, na fogueira sempre sedutora da vaidade, ou do amor-próprio ferido, não havendo distinção entre uma e outra coisa, a não ser no modo de ver e das circunstâncias concomitantes, mas trata-se do mesmo reforço do cacho de crenças que repisamos, individual e colectivamente desde o berço. Esse mosto monstra-nos impede que nos elevemos à alvura do rosto.

Possuir um rosto é, nas palavras já há muito silenciadas, do meu avô paterno, ‘ter cara para levar um estalo’. Quantos Satori estão ao nosso alcance quando enfrentamos os outros rosto com rosto? Sabe-se lá! Já pouco nos enfrentamos, tratamo-nos com aquela indiferença de sete cães a um osso. A ossatura da inveja faria inveja ao mais colossal dos dinossauros. Mas deixemo-nos de fósseis: quem consegue erguer-se à doação pura das flores? A fragilidade na sua firmeza, a brevidade em toda a inteireza da eternidade que desponta no fio da navalha do efémero. Não era assim que deveríamos abrir os olhos de manhã?

Mas o isolamento também, se for uma fuga, não é solução, embora seja talvez o que nos possa serenar, para, depois, podermos dar o salto, podermos mergulhar nas águas cristalinas do instante, a amurada do abismo do Íntimo. Perde-se tempo demais a tentar ler os olhares e as caras, quantas pessoas matamos no nosso dia-a-dia? Centenas de rostos-borboleta, pregados com alfinetes dourados na caixa aveludada da socialização…

E quando as relações se tornam actos de contabilidade, operações de caixa? Fulano é mais importante do que sicrano, por isso estar com ele é-me mais vantajoso, posso exibir os meus ‘conhecimentos’ como troféus de caça, todos eles empalhados depois do tiro fatal, ganham bolor, mas não faz mal. E há muitas personalidades que não se importam de servir de vacas leiteiras à egolatria dos outros, mú-mú-que-bem-que-me-aplaudes, mú-mú-como-reforças-a-minha-já-considerável-importância, mú-mú, vê lá se nessa manjedoura está algum menino-Jesus que nos transformará em figuras de presépio… Triste sina de quem crê mais no ego do que na identidade com o mais Profundo.

Talvez a paz esteja mesmo na solidão amestrada, a solidão do silenciamento e do acto de velar – observar a nudez íntima de tudo. Talvez. Talvez isso nos torne chão comburente para o supremo incêndio do Espírito e da sua Paz avassaladora.

A tempestade que muito longe se aproxima ouve-se no silêncio dos pássaros.

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