Passa o Abel, zelador municipal, e a sua bíblica infância de pastor. Conserva ainda no pescoço o derradeiro vestígio do golpe fraticida: a cicatriz duma escrófula. É zelador municipal - a cabeça de boné e um vestuário civil, inofensivo; e, entre as suas plantas e a terra, duras solas de couro não o deixam enraizar e ser ainda a lenha da fogueira que ele acendera em sacrifício ao velho deus das Escrituras.
Calçou-se, perdeu a memória. A sola de couro separa-nos da terra; o chapéu de feltro isola-nos do céu, e o fato de pano completa o isolamento. Que resta de Abel? Uma pobre múmia enroupada e enviada pela Esfinge, a impor silêncio aos carros chiadores que atravessam as ruas de Amarante.
Abel, meu caro amigo, vive descalço e descoberto! Cria raízes ns plantas e ramagens na cabeça. Sê uma árvore, já que não podes ser um deus!
Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000, pp.33-34
Todos os municípios, em Portugal, têm o seu Abel... pascoaliano!
ResponderEliminarEm Góis, por exemplo, tinha o nome de Roque, um santo sem altar; em Arganil... o Toninho Espanhol, que o rapazola sempre se escusou a condecorar; e por aí além. Caím... só na terra ou na cabeça do Saramago! JCN
ResponderEliminar