sábado, 5 de setembro de 2009

sobre os obstáculos

(Quadro: Van Gogh, "semeador com pôr-do-sol")

Obstáculo foi coisa que jamais me importou; procurei sempre seguir nisto a lição dos rios: tiram a extensão e variedade de seu curso daquilo que se lhes opõe; ou das pedras: depende do que somos esbarrarmos nelas e nos queixarmos ou subir-lhes em cima e ver mais longe.

Prof. Agostinho da Silva

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A mais pesada das mentiras é mais verdadeira que a própria verdade (sem ingenuidades filosóficas). O cúmulo da dissimulação é a transparência. A maldade é melhor que a própria bondade (sem subtilezas morais).

Felizes são os que vivem sem esforço, aqueles para quem a vida é apenas e totalmente a vida. Os que dormem quando têm que dormir e acordam quando têm que acordar e conseguem, no meio de toda a agitação do viver quotidiano, sentir o chão e tudo o que dele brota, e a brisa, com tudo o que antes dela não havia nos ares estagnados da indiferença.

E também os que têm as mãos vazias e o olhar límpido. Aqueles que têm como maior tesouro a capacidade de entrega. A esses nada pode ser tirado. Não medem o seu tamanho pelo da sua sombra no ocaso. Vêem-se sempre como seres do meio-dia, pasto do Sol, arautos da imensidade. Quando a noite vem, acolhe-os na amniótica co-presença do que se deixa morrer porque a vida é assim.

O espantalho no meio da seara julga que tem poder sobre os pássaros. A sua rigidez convence-o de que não é uma marioneta. Acredita que todo o trigal é dele. Mas o senhor da espera é o ceifeiro, precisamente aquele que sabe ser semeador e sabe que os pássaros o respeitam mais a ele que ao espantalho. Sem ele acabaria a festa dourada dos grãos. Até o casaco roto do espantalho foi dele.

E mesmo quando os corvos visitam a seara, encontram no espantalho um poleiro. Como eles não estão interessados no engodo dos pássaros, o espantalho julga-se senhor duma legião. Convencido, é claro, pela sua rigidez. Mas é curta a soberania de palha. O restolho é fraca herança para quem já foi seara e não sabe usar os grãos.

Ora, a vida entre humanos é, como diz o Mestre Agostinho, conversável. Quem conversa, reversa-se, reversa revertindo-se, diverte-se conversando, vive a alegria do encontro, da discussão, da polémica, converte-se ao outro, converte-se noutro, mesmo que não se saiba converso. A rigidez é sinal dum coração morto. E morto o coração, as palavras, nem espadas, nem punhais, transformam-se em navalha curta para desferir golpes pela calada. Nessa situação não há conversa nem combate.

Só se derrota quem se derrota a si próprio.

Mas pior do que isso, os que se calam, os que abdicam, os que sabem que não serão vítimas da sombra, porque sentem segurança no medo ou naquele estado em que nem isso existe. Quando a vida se transforma numa mascarada a mais profunda duplicidade é mais sincera que a sinceridade.

O que importa é ir em frente, cada vez mais à frente, à frente cada vez mais, até…


10 comentários:

  1. A vida é sempre em frente, dizia-me o meu avô. Não há passos atrás, todo o passo é um passo em frente. Ainda que regridamos, ainda que abdiquemos, estaremos numa situação nova. Essa é também a magia (e a imagia) do mundo, apresentar-se como constante novidade. Difícil é olhá-lo como se o olhássemos pela primeira vez. Para isso temos de nos esquecer dos nomens das coisas e "entrar" nelas, no seu mistério, porque tudo o que é novo se apresenta como espantoso e misterioso. Eventualmente perde a sua graça, mas que não percamos o espírito para que tal não aconteça.

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  2. Que nunca percamos o espírito!, agarremo-lo com unhas e dentes, que nunca (n)o(s) esqueçamos. Agora que penso, talvez isso seja o mais próximo de estar desperto. Mas não quero ir por aí porque não percebo nada disso. Abraço.

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  3. Excelente texto para reflectir: seremos todos espantalhos, revolvidos por ventos que nos revolvem sem porquê nem para quê? Existiremos na total aleatoriedade? Creio que não. Mas a meu ver se é possível um contacto com Deus, portanto com o fundo do mundo ou da existência, é quando criamos e é na contemplação dessa criação que tudo ganha sentido, um sentido em que esta efémera existência se eterniza e em que tudo é a mais pura i-lusão.

    Não obstante o texto apelar à reflexão, e portanto à dúvida e à especulação, termina com uma incitação prática - ser mais, fazer mais, lutar, superar, ultrapassarmo-nos, transcendermo-nos, extasiarmo-nos. Ora esse êxtase ocorre precisamente na contemplação da obra de arte, mas não só nesta, pois o mesmo e tão ou mais divino é o caso do amor, que torna tudo o mais irrisório.

    Assim temos a meu ver as duas "coisas" mais importantes da vida, a arte e o amor, as únicas ou das poucas que preenchem o vazio que nos assola, eliminando a vontade de ser.

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  4. E se a minha linha de raciocínio está correcta, isto é, de acordo com o texto, trata-se de um texto bastante espiritualista e não materialista, e portanto um texto religioso, dado que a meu ver todas as religiões (que parcamente conheço) são espiritualistas e não materialistas. Outro abraço e pena por não ver desta vez mais uma fotografia matematicamente sublime.

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  5. Mas de facto o texto deixa-nos a pensar, pelo menos a mim deixa, se não seremos espantalhos, quando o julgamos não ser. Fica a pergunta: o que é ser espantalho neste mundo e nesta sociedade? O que é não sê-lo?

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  6. O melhor é não termos macaquinhos no sótão. O resto é curtir o Sol e tudo o que venha dia-a-dia.
    Abraço!

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  7. para mim "Ser ou Não Ser", é apenas uma escolha, tudo o mais é viver segundo o que escolhes a todo o momento.
    Vive!

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  8. Bonito, muito bem dito...

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