Foto: São João Clímaco (580-650)
"Ele se tornou famoso, como já disse, por sua obra «A Escada» (klímax), chamada no Ocidente de Escada do Paraíso (PG 88, 632-1164). Composta pelas insistentes petições do higúmeno do mosteiro de Raito, perto do Sinai, a Escada é um tratado completo da vida espiritual, na qual João descreve o caminho do monge desde a renúncia ao mundo até à perfeição do amor. É um caminho que – segundo este livro – acontece através de 30 escadas, cada uma das quais está unida à seguinte. O caminho pode resumir-se em três fases sucessivas: a primeira mostra a ruptura com o mundo, com o fim de voltar ao estado de infância evangélica. O essencial, portanto, não é a ruptura, mas a união com o que Jesus disse, a volta à verdadeira infância em sentido espiritual, o chegar a ser como crianças. João comenta: «um bom fundamento é formado por três bases e três colunas: inocência, jejum e castidade. Todos os recém-nascidos em Cristo (cf. 1 Cor 3, 1) devem começar por estas coisas, tomando o exemplo dos recém-nascidos fisicamente» (1, 20; 636). O afastamento voluntário das pessoas e lugares queridos permite à alma entrar em comunhão mais profunda com Deus. Esta renúncia desemboca na obediência, que é o caminho da humildade, através das humilhações – que não faltarão nunca – por parte dos irmãos. João comenta: «Bendito aquele que mortificou sua própria vontade até o final e que confiou o cuidado de sua pessoa ao seu mestre no Senhor: será colocado à direita do Crucificado» (4, 37; 704).
A segunda fase do caminho está constituída pelo combate espiritual contra as paixões. Cada escada está unida a uma paixão principal, que é definida e diagnosticada, indicando também a terapia e propondo a virtude correspondente. O conjunto destas escadas constitui sem dúvida o mais importante tratado de estratégia espiritual que possuímos. A luta contra as paixões se reveste de positividade – não se vê como uma coisa negativa – graças à imagem do «fogo» do Espírito Santo: «Todos aqueles que empreendem esta bela luta (cf. 1 Tm 6, 12), dura e árdua, [...], devem saber que vieram para lançar-se ao fogo, se verdadeiramente desejam que o fogo imaterial habite neles» (1, 18; 636), o fogo do Espírito Santo, que é o fogo do amor e da verdade. Só a força do Espírito Santo assegura vitória. Mas, segundo João Clímaco, é importante tomar consciência de que as paixões não são más em si mesmas; só o são pelo mau uso que a liberdade do homem faz delas. Se forem purificadas, as paixões abrem ao homem o caminho para Deus com energias unificadas pela ascética e pela graça e, «se receberam do Criador uma ordem e um princípio..., o limite da virtude não tem fim» (26/2, 37; 1068).
A última fase do caminho é a perfeição cristã que se desenvolve nos últimos sete degraus da Escada. Estes são os estágios mais altos da vida espiritual, experimentados pelos esicasti, os solitários, que chegaram à quietude e à paz interior; mas são estágios acessíveis também aos cenobitas mais fervorosos. Dos três primeiros – simplicidade, humildade e discernimento – João, em linha com os Padres do deserto, considera mais importante este último, ou seja, a capacidade de discernir. Todo comportamento deve submeter-se ao discernimento, tudo depende, de fato, de motivações profundas, que é necessário explorar. Aqui se entra no profundo da pessoa e se trata de despertar no eremita, no cristão, a sensibilidade espiritual e o «sentido do coração», dom de Deus: «Como guia e regra de todas as coisas, depois de Deus, devemos seguir a nossa consciência» (26/1, 5; 1013). Desta forma se chega à tranquilidade da alma, a esichía, graças à qual a alma pode vislumbrar o abismo dos mistérios divinos.
O estado de quietude, de paz interior, prepara o esicasta para a oração, que em João é dupla: a «oração corpórea» e a «oração do coração». A primeira é própria de quem deve fazer-se ajudar por posturas do corpo: estender as mãos, sussurrar, bater no peito etc. (15, 26; 900); a segunda é espontânea, porque é efeito do despertar da sensibilidade espiritual, dom de Deus a quem se dedica à oração corpórea. Em João esta toma o nome de «oração de Jesus» (Iesou euché) e é constituída pela invocação do nome de Jesus, uma invocação contínua como a respiração: «A memória de Jesus se faz uma com tua respiração, e então descobrirás a verdade da esichía», da paz interior (27/26; 1112). No final, a oração se torna algo muito simples, a palavra «Jesus» se converte em uma só coisa com a nossa respiração.
O último degrau da escada (30), repleto da «sóbria embriaguez do Espírito», dedica-se à suprema «trindade das virtudes»: a fé, a esperança e sobretudo a caridade. Da caridade, João fala também como eros (amor humano), figura da união matrimonial da alma com Deus. E escolhe mais uma vez a imagem do fogo para expressar o ardor, a luz, a purificação do amor a Deus. A força do amor humano pode ser reorientada para Deus, como sobre a oliveira pode-se enxertar oliva boa (cf. Rm 11, 24) (15, 66; 893). João está convencido de que uma experiência intensa desse eros faz a alma avançar mais que a dura luta contra as paixões, porque é grande seu poder. Prevalece, portanto, a positividade do nosso caminho."
Bento XVI
link: http://www.zenit.org/article-20794?l=portuguese
Como as vias são parecidas... A visão, a meditação e a acção... Gostava agora de citar o mestre Sogyal Rinpoche:
ResponderEliminar«(...) o que é para mim a maravilha do dzogchen? Todos os ensinamentos levam à iluminação, mas o que este tem de único é o facto de nunca, nem sequer na dimensão relativa dos ensinamentos, macular o absoluto com conceitos. Deixa-o imaculado e nu, na sua dinâmica e majestosa simplicidade e, no entanto, fala dele - a alguém com uma mentalidade aberta - em termos tão gráficos, tão electrizantes, que obtemos a graça - mesmo antes de atingir a iluminação - de dar um poderoso relance sobre o esplendor de um estado em que nos encontramos totalmente despertos».
A seguir, o mestre escreve sucintamente acerca das três etapas da ascese:
«O treino prático par o caminho do dzogchen é tradicionalmente, e com grande simplicidade, descrito em termos de «visão, meditação e acção». Ver directamente o estado absoluto, a base do nosso ser, é a "visão", enquanto a "meditação" é o modo de estabilizarmos essa visão, transformando-a numa experiência ininterrupta; por fim,
"acção" quer dizer a integração dessa visão em toda a nossa realidade e no dia-a-dia.»
Julgo que a primeira fase da "Escada do Paraíso" correlaciona-se com o budismo primitivo, a tradição Theravada, a via da renúncia. Renúncia de quê? Renúncia do "eu", da palavra que me nomeia, da profissão que me caracteriza, de caracterizações e maquilhagens que en-cobrem o inefável efável... (Ah!... Não resisto agora citar Paulo Borges (não passo dum pobre ignorante (a)-criativo citador...), «sem o repovoarmos com esse novo e sempre velho deus, afinal bem menor e muito mais ridículo, do nosso ego, incapaz de se ultrapassar, de se trespassar e morrer nessa suposta transcendência de tudo?!...» A renúncia da id-entidade leva-nos à infância, à origem, à natureza primordial do nosso ser. Contudo é preciso estabilizar a Visão e a segunda fase é o combate espiritual contra as paixões. Creio que esta fase corresponde ao Mahayana, a Shantideva e o seu caminho do despertar. De facto, esta tradição apresenta uma grande variedade de antídotos para todo o tipo de emoções perturbadoras (kleshas) resultantesdo apego, da aversão e, claro, da ignorância do nosso estado primordial. Bento XVI fala-nos dum fogo, o fogo do espírito santo, purificador das energias negativas... Usar a energia destas emoções, que não são más por si mesmas, para ir na direcção de Deus... Julgo que esta fase assemelha-se ao Vajrayana que, creio, consiste em usar a energia das emoções perturbadoras para que o continuum da Visão se incremente. Os tantras que recorrem a práticas sexuais com o fim de aumentar a percepção do continuum... Não sei se a Igreja Católica faz uso deste tipo de práticas...
ResponderEliminarA terceira fase, julgo que corresponde à acção qe consiste em seguir a nossa voz interior, a ordem cósmica, Deus na nossa vida teomundana.
Amigo Kunzang, para quê tanto texto? A melhor via é o amor. E o amor revela-se no amor pelo outro. Os padres do deserto são alienados. Abraço.
ResponderEliminarA Igreja é uma alienação do que é ser humano. Vive do sofrimento e das fantasias que ao sofrermos criamos - "na outra vida estaremos juntos", e assim por diante, talvez para não encararmos a realidade. É um bálsamo. Põe-se a questão de Dennett: será a religião perniciosa? Apenas algumas? Nenhuma? Abraço.
ResponderEliminarNão acredito na via do amor sem a sabedoria pois sem esta julgo que o amor é parcial e dual, logo causa de sofrimento.
ResponderEliminarTambém julgo que a igreja não é alienação do ser humano mas sim o ser humano alienação de si mesmo quando igreja não é uma instituição que conduz o homem à santidade, ou seja, à aniquilação desta mesma instituição.
Será a religião perniciosa? Se a re-ligião oferecer meios hábeis ao homem de re-ligação com a natureza, com o mundo, com o cosmos, com a sua natureza primordial, com Deus, com nada, por que é então perniciosa? Se pelo contrário visa a exploração do homem pelo homem, então não tenho dúvidas que assim seja...
ResponderEliminarOs padres do deserto são alienados. Alienados de quê? Creio que não são alienados do "tanto" texto santo bíblico. Aliás, São João Clímaco afirma que "É grande a utilidade da leitura para esclarecer e recolher o espírito".
ResponderEliminarLer os textos sagrados constitui uma jangada que permite o praticante passar da margem da separação, da dualidade, do samsara para a margem da união. Só depois o ocupante abandona a jangada e O Livro Morreu.
Kunzang, penso que são alienados do outro. É escapismo.
ResponderEliminarSão misantropos, inimigos do Universo e amantes do seu próprio sonho. Tudo bem, mas nada a favor.
ResponderEliminarTal como Milarepa que passou a maior parte da vida retirado num eremitério em meditação, alimentando-se de urtigas e "alienado do outro". Talvez para se amar incodicional e sabiamente seja necessário a alienação do outro para que a mente se foque no (a)essencial, a alienação que conduz à lienação alienada do outro... não sei...
ResponderEliminarPenso apenas que por vezes precisamos de escapar um pouco. Mas... somos as pátrias uns dos outros.
ResponderEliminarTemos tempo para nos tornarmos pedras.
ResponderEliminar"amantes do seu próprio sonho"...
ResponderEliminarFizeste-me recordar um poema de Agostinho da Silva:
«Nunca percorri estrada
que não fosse a do egoísmo
bem andado
e com cinismo.
Mas cheguei agora ao fim
não amo os outros por eles
mas por mim»
Bem, tenho de ir dar banho ao meu miúdo...
ResponderEliminarabraço e boas músicas:)
Hehehe poema malabarista. Abraço :)
ResponderEliminarGostei muito, Damien, tal como das aproximações de Kunzang Dorje. Quando conheci o Jean-Yves Leloup, na Faculdade de Letras, ele disse-me que estava a escrever um estudo sobre a espiritualidade hesicasta e o Dzogchen. Hei-de escrever-lhe a perguntar-lhe por ele.
ResponderEliminarCaro Livro que Morreu, não se pode fazer juízos tão precipitados sobre uma grande tradição de espiritualidade, feita de vidas inteira e apaixonadamente dedicadas à busca do divino, a Realidade última... Creio que nós somos todos bem mais "alienados", do outro e de tudo.
Enganei-me! Julguei que este post fosse do Damien!...
ResponderEliminardamien... kunzang... pedro... paulo... luiz... lapdrey... siddha... nuno... JCN... anaedra... fragmentus... máscaras, heterónimos que (des)cobrem o nada que (não) somos.
ResponderEliminar"Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. De fosse alguma coisa, não poderia imaginar." - Pessoa
abraço ao mundo imundo
Caro Paulo, a mim parece-me sem sentido e também que só um grande sofrimento pode levar a tal isolamento; sob pena de erro.
ResponderEliminarE parece-me também, sob pena de erro, que quem se isola foge da ferida.
ResponderEliminarE vão arranjar uma ferida maior: a dor de não viver. Se nasceram, por que não vivem? Ainda ontem estive numa cela dos Capuchos e tive de fugir rapidamente dali. Abraço.
ResponderEliminarSó outra nota: não é por ser uma grande tradição que é correcta. Afinal um simples e efémero sorriso pode ser mais eterno na vida de alguém do que qualquer tradição milenar.
ResponderEliminarPaulo, abandonemo-nos/entreguemo-nos uns aos outros, não fujamos, chega de fugir. Isso é a Hora. Chega de fugir. Chega de malabarismos dialécticos. Chega de teorias estranhas e ininteligíveis. Olhemo-nos nos olhos.
ResponderEliminarQuem mais foge, mais sofre. Quem mais se isola, mais sofre. Não é verdade? Então chega de fugirmos ao mundo e chega de nos isolarmos. O mundo tem muito mal, mas tem também muito bem. Os acidentes acontecem: mas para quê viver com medo?, do mundo e dos outros?
ResponderEliminarE escrevo esta verborreia sob pena de estar completamente errado e vocês, que admiram os hesicastas, correctos.
ResponderEliminar"Não sigas o profeta que fala mas não cumpre", nunca me esquecerei desta frase de um professor. O mesmo se aplica a vós, defensores do hesicasmo e que no entanto diariamente se ligam à internet, por exemplo, o que é evidentemente um forma de comunicação e de comunhão, embora diferente de estar com o outro. O ser humano não é feito para viver isolado, mas com o outro. Que aprendamos isto de uma vez por todas.
ResponderEliminarOutra nota, Paulo: não creio que buscassem o divino, ma sque iludidos pensassem buscar o divino. Na verdade estavam a profanar quase tudo o que Deus (se existe) lhes concedera. E assim termino a minha actuação. Saúde.
ResponderEliminarEu não defendo nem pratico o hesicasmo, porque não é a via mais adequada para mim. Agora isso não me leva a considerá-la errada ou não eficaz para muitos.
ResponderEliminarE o isolamento pode ser a melhor forma de estar em comunhão com todos. Quando nos relacionamos socialmente, só o fazemos com alguns, exteriormente, e às vezes com nenhuns. Considero-me mais isolado que todos os hesicastas. A solidão acompanhada é a pior das solidões.