«Permite, Senhor, que vá primeiro sepultar o meu pai.» Tornou-lhe Jesus: «Deixai os mortos sepultar os seus mortos. Tu, porém, vai e proclama o Reino de Deus.»
»Seguir-te-ei, Senhor, mas primeiro, permite que vá a casa despedir-me.» Respondeu-lhe Jesus: «Quem empurra o arado e torna a olhar para trás, não é idóneo para o reino de Deus.»
Lucas, IX; 62
José Flórido, Reencontrar Agostinho da Silva o Poeta e o Poema, Zéfiro, p.89
(...)
Segunda Velha:
Eu tinha um marido muito bom, cumpridor, amigo da sua família. Bem me custou educá-lo na obediência, no dever e na regra, a trabalhar para que nada faltasse. Mas, depois que o ouviu [Jesus], fez-se santo e ninguém o pode aturar. Exaltando-se: Quem é que pode aturar um santo? Um santo é um desastre para uma família; pelo menos, enquanto está vivo. Um homem que nã tem costumes, que dá tudo o que tem, que dá o ordenado, que sai e entra a toda a hora, diz o que sente e não quer saber da família!
Um Homem:
A verdade.
Segunda Velha:
Que é santo e que depois que é santo se tornou o escândalo do meu bairro e se dá com a canalha da rua! Um chefe de repartição! E falta à repartição, falta a tudo, até falta aos seus deveres conjugais, depois que é santo!
Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, Jesus Cristo em Lisboa, tragicomédia em sete actos, Assírio e Alvim, 2007, pp.42-43
(...)
Será o amor imparcial/objectivo pela humanidade compatível com o amor parcial/subjectivo pela família? Não serão as obrigações conjugais um entrave para o pleno cumprimento do homem/humanidade? Implica a renúncia o abandono de entes familiares e amigos?
A (des)medida é dada por Jesus, ele próprio:
ResponderEliminar"Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim" (Mt.10,37)
E imediatamente antes dissera:
"não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada;
Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra"(id.34-35)
Se isto não é explosivo, não sei o que seja.
O facto é que apenas quem leve radicalmente à letra isto que aqui está dito - sem interpretações "espirituais", "adaptações aos tempos" ou sequer "monaquismos interiorizados" - pode arvorar-se o direito de chamar-se realmente cristão.
Até lá, será mero "metal" vil e in-humano, a levar ao impiedoso crisol da alquimia da transfiguração no Tabor.
O que quer que se tenha feito dos ensinamentos de Jesus, de Yeschua, em doutorados arcaboiços, aparatos eruditos ou aparatosas teologias, isso é apenas pó e é pura vaidade.
Não altera um iota que seja na "escrita", na "lavoura" da alma de quem quer que seja: que é o único que importa.
Por isso, por ser tão radicalmente explosivo, o ensinamento de Jesus tende sempre para ser domesticado e adocicado ou, até, como agora, pela Nova Era, "ascensionado".
Mas a verdade é que, tal como todos os grandes mestres, que "passaram fazendo o bem" entre os homens, também em relação a Jesus, as suas palavras e a sua vida não são alfim "domesticáveis".
Sempre houve quem se arvorasse em herdeiro e depositário da sua palavra, e foram os tais os seus maiores vendilhões e traidores.
Tal como acontece com a verdade que está mais no que se não vê e mais no que se não diz, também assim acontece com Jesus: mais fala ele em todos os "pequeninos", e no seu silêncio de inocentes, que são sua viva presença, para nosso colectivo escândalo, do nos arrebiques de circunstância das homilias muito bem refasteladas:
não custam nada a ler, e têm almofada no traseiro.
Concluíndo: tal como o ensinamento dos grandes mestres, o de Jesus é absolutamente explosivo - se levado a sério e até às últimas (primeiras?) consequências!
Ao seu lado, qualquer dito "fundamentalismo" é uma brincadeira de "meninos mal comportados".
Ainda que justa ou injustamente mal comportados...
(Mas isso é outra conversa!)
quem leva o arado não olha para trás, semeia é semeador de liberdade e de justiça, quem tem na sua familia a sua semente é um homem justo, muito mal foi realizado à sombra do amor pela humanidade, os humanos, na sua maior parte, não o merecem. ame-mos os nossos e sejamos totalmente parciais
ResponderEliminarcorrijo, retiro o traço (separação) no amor.
ResponderEliminarPorque Deus também é doméstico, a família é o desafio do santo.
ResponderEliminarSe me fosse lícito sugerir, eu diria que o santo não tem casa, ainda que seja casado, posto que o Filho do Homem (de que ele é o ícone vivo) "não tem onde recostar a cabeça", como está escrito.
ResponderEliminarIsto, creio, equivale a dizer que a casa do santo é o mundo, é o universo, é tudo, e é até o inferno.
Disto fala, porventura, o santo monge e staretz atonita Siluan, ou Silvano (1866-1938, a quem, segundo o seu próprio testemunho, o Cristo teria aparecido em visão, dizendo:
"Mantém o teu espírito (nous) no inferno, e não desesperes"
Isto, haveria ele de transformar numa espécie de caminho de "bodhisatva", em contexto cristão ortodoxo, orando e intercedendo por todos os seres.
Eis como o seu discípulo e principal hagiógrafo, o Arquimandrita Sophroniy, que viveu igualmente no mosteiro russo de São Panteleimon, no Monte Athos, descreve a ascese do santo místico:
"No início de tal exercício, o asceta faz descer o seu espírito (nous) até ao inferno, ali permanecendo parcialmente prisioneiro do poder deste. Porém, a disciplina conduz à impassibilidade (apatheia), no ulterior desenvolvimento da disciplina, transformando-se o inferno do pecado em 'inferno do amor de Cristo', algo essencialmente distinto.(...)
"Como é possível que quem é Luz inacessível e Amor sem medida se abaixe até ao nível das trevas do ódio?
"Encontramos uma esplicação em São Paulo, quando escreve:'Assim, a morte opera em nós, e a vida em vós" (2 Co. 4,12). Tal é o poder do amor: mudar as vidas. Quem ama, vive a existência do amado como sua, ao ponto de transmitir-lhe a força e a luz do seu amor; e assume, em troca, as suas trevas e a sua morte."
(in Archimandrita Sophrony, "San Siluoan El Athonita",Ediciones Encuentro, Madrid, 1996, pág.191)
"No início de tal exercício, o asceta faz descer o seu espírito (nous) até ao inferno, ali permanecendo parcialmente prisioneiro do poder deste. Porém, a disciplina conduz à impassibilidade (apatheia), no ulterior desenvolvimento da disciplina, transformando-se o inferno do pecado em 'inferno do amor de Cristo', algo essencialmente distinto.(...)
ResponderEliminarTalvez o inferno do pecado difere do inferno do amor na medida em que no primeiro o sujeito atribui existência intrínseca aos objectos que percepciona, desenvolvendo sentimentos de apego e aversão que desviam o sujeito da sua natureza primordial. Talvez durante a prática ascética de disciplina e oração, o sujeito vá acalmando a mente das emoções perturbadoras, perceba que os objectos percepcionados tenham origem e fim na mente e que a natureza, tanto dele como dos objectos não seja antagónica, dupla mas sim una, o um que através da prática se revela como um continuum sonoro e luminoso, o uno para os existencialistas, o vazio ou nada que é tudo, para os (a)teus. Inferno de amor que se des-venda com a prática, com exercícios de ascese que propiciam o cada vez maior des-velamento do continuum. Acredito que os mestres vivem todo o instante nesse inferno de amor que creio ser branco e luminoso, havendo momentos em que, por compaixão, dirigem a sua atenção para a nossa dimensão relativa e dualista; pelo contrário, os discípulos vivem todo o instante no momento ou na história, dirigindo através da prática a sua atenção para o continuum que são. Não sei... pura especulação...
A explicação de São Paulo faz-e recordar o tonglen, a prática budista na qual o praticante toma para si o sofrimento do outro sob a forma de fumaça negra, dando em troca amor e compaixão em forma de fumaça branca. É uma técnica que alia a respiração e a prática da compaixão.
Grato pelas suas explicações:)
O inferno pode ser a cidade em que vivemos, o trabalho no qual passamos a maior parte do tempo, as multidões que temos de enfrentar todos os dias a caminho do trabalho, a crítica destrutiva que visa a nossa destruição, a publicidade enganosa e libidinosa que quer sugar-nos tudo o que pudermos dar... Se no princípio acreditamos neste baile mascarada, atribuirmos existência a todos esses objectos, sentido apego ao desejável e ódio ao aversível, com a prática vamos estabilizando a mente e ver o vazio de todos os fenómenos, como num sonho. O inferno passa a ser inferno de amor, inferno de compaixão por todos os seres sencientes que sofrem na (i)lusão infernal da dimensão existencialista.
ResponderEliminarQue nos abandonemos (entreguemos) uns aos outros.
ResponderEliminar