segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Nevoeiro II

(...) Que havia mais na vida do homem e da terra e do universo além do espírito que por tudo passa e tudo ilumina?
(...) Toda a história do homem
- Quero dizer, dos seus erros
assenta na ignorância de que há um espírito no universo que o trespassa e o realiza, e o é, e a tudo afirma o seu ponto de chegada. Porque tudo caminhava para lá. Os deuses, as pedras e os cães. E os homens. É o absoluto inominável. Dele o homem é que dá testemunho. Nele se exprime, nele diz.
- Que estupidez! - clamou o Padre Marques, a arrasar.
Havia um nome para isso, «panteísmo» decerto, Ema sorriu com pena.
- Eu disse o «inominável» - declarou. - «Panteísmo» é um nome.
Mas se o «panteísmo» era a «religião das religiões», de acordo, ela era «panteísta». Simplesmente, porquê então um nome? Porque um nome destaca o que se nomeia, ou seja, deixa coisas por nomear, faz delas um pano de fundo. Ora não havia outra religião, não havia pano de fundo, porque tudo era o fundo, a totalidade.

Vegílio Ferreira, Alegria Breve, Bertrand Editora, pp.208-209.
--------------

Que diziam? Um suicídio da Humanidade? Mas seria óptimo - alguém observou. Que tinha que fazer a Humanidade? Ela estava no fim. Esgotara tudo.


- Há sempre um Noé que escapa. Um Deucalião e Pirra.
Depois voltarão os homens. Consertarei as suas moradias. Em silêncio esperarei.
- Para qualquer lado que a gente se volte: tudo no fim.
Há dois mil anos. Política, Arte, Religião, Costumes, Filosofia. Tudo no Fim.
(...)
- Política, Filosofia, Religião. É ver a Arte, essa evidência da vida. Tudo se despedaça, se destrói, no estertor do fim.
- Deus vive! - disse Padre Marques.
Que pensas tu , Ema? Deus já não tem nome.
- Nunca o teve! - diz ela.
Oh, teve, decerto. Tu lho negas agora, para nada te forçar a encontrares-te com o teu vazio. Nesse jogo furtivo com uma sombra que se esvai, tu atemorizada com a tua limitação, tu que sabes que nada mais é, tu que negas previamente qualquer concretização, qualquer definitividade, para nela não tropeçares, tu dizes:
- Todas as religiões estarão em crise. Mas não o sagrado que as justifica.
- É o fim de uma cultura - disse alguém. - Tudo o que era nela possível se realizou. Não há mais possibilidade. Há só que reinventar tudo outra vez.
(...)
- Vai morrer - disse Ema fulminada.
- Mas o homem não é uma espécie extinta! - disse eu em delírio.

Vergílio Ferreira, Alegria Breve, pp.214-215.
-------
Apocalipse sem anjos nem trombetas, o fim chegou devagar como o silêncio da tarde. Porque não abrimos uma falência brusca e comerciamos ainda com a vida num comércio de papéis. E é só a um instante lúcido e fugidio, que o papel se nos revela na sua inutilidade de papel. Findou em nós o trabalho das gerações e os nossos filhos não têm pais. Calaram-se em nós as últimas palavras do amor e os nossos filhos só conhecem a saturação do prazer. Acabou em nós a razão do heroísmo e os nossos filhos só conhecem o aventureiro e o assassino. Cessaram em nós todas as religiões e todas as anti-religiões, que eram religiões do avesso, e a nossa herança a transmitir é apenas o desespero ou o silêncio. Turbou-se em nós a certeza da justiça e a instituição que legámos é apenas a do cárcere, com o preso e o carcereiro em papéis alternados e permutáveis. Perdeu-se em nós a segurança do saber, e a tranquilidade dos sistemas oscilou em inquietação. Quebrou-se a firmeza do afirmar, e dela regressámos para o antes de ser firme. Corroeu-se em nós a ideia de beleza e o que amealhámos para herança foi só quando muito a beleza do horrível (...).

(...)Falo no centro da noite, é a hora que me coube, a minha hora. Mas o sol de outra manhã que a aflição nos exige, tem decerto a verdade que vem na violência da esperança. Porque nada mente a uma esperança, se ela é a necessidade da vida. Mais alto do que os deuses, porque aos deuses inventou, que o homem tente agora inventar-se a si próprio. Uma nova idade se erga - vai erguer-se, eu o sei, nós o sabemos. Não de sinais revelados em profecia, mas da grave certeza que está antes dos profetas e do seu ruído.


Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, Bertrand, pp. 17-18.

3 comentários:

  1. Grande, grande Vergílio Ferreira!

    Somos cada vez mais esta noite, este nevoeiro, este esgotamento de todas as possibilidades e, por isso mesmo, o germe de uma Coisa nova. Cuja ligação, todavia, ao passado e ao presente é não poder em absoluto pensar-se e menos projectar-se a partir deles. Tal como disse Heraclito dos homens, quando mortos: coisas nos aguardam que não esperamos e nem sequer imaginamos.

    Felizmente.

    ResponderEliminar
  2. Garto por voltares a este espaço.

    Abraço!

    ResponderEliminar
  3. Caro João Beato,

    O homem tem, seguramente, de se reinventar a si próprio e nisso se vigiar. Pois que asfixiar a esperança é morrer definitivamente.

    Não me parece que o Homem vá morrer. Agonizar, tornar-se moribundo de si, vejo que o está, pois que se interroga com a face colada ao nevoeiro da sua mesma falta, da sua mesma "ignorância"...

    Creio que há no "panteísmo" de todo o humano cantar e chorar, um nome apenas... o de uma ausência, talvez de um profundo desencontro...
    Queremos a totalidade do Homem e a esse não precisamos de o designar, mas sabêmo-lo cheio do espírito que o "trespassa" e o entrega, nu, à face do mistério que o fascina e move, na i.mobilidade da sua presença eterna.

    (Precisamos de uns óculos de dissipar nevoeiros!
    Já temos o som da campainha da bicicleta de Platero!...
    :)

    Um abraço

    ResponderEliminar