"Às vezes a realidade abre um rasgão
e nós vemos o clamor da derradeira cal
ou o incêndio das nossas coordenadas
Mas [...] não suportamos essa visão do fim
e procuramos reconstruir o nosso círculo quotidiano
Tudo o que pensamos ou é de mais ou de menos
porque a realidade é insondável e alheia
e se para ela nascemos vivemos sempre à beira
dos abismos que a dissolvem ou entre os espelhos que a deformam"
- António Ramos Rosa, As Palavras, Porto, campo das letras, 2001, p.51.
Um dos textos a comentar no curso livre "O sentimento cósmico da vida. A experiência da totalidade na poesia portuguesa contemporânea", com início a 9 de Outubro, na Associação Agostinho da Silva.
Palavras calcinantes, estas de Ramos Rosa. Verdadeira alquimia do des-vendar-nos.
ResponderEliminarNudez. Nudez de ser tão pouco. Tão "poucamente" alguma coisa.
"Às vezes a realidade abre um rasgão" em nós "e nós vemos" enfim "o clamor da derradeira cal ou o incêndio das nossas coordenadas" - então, bem vistas, descoordenadas.
Somos rasgão, ou somos causa ou consequência dele? O poeta bem diz ser isso "às vezes", mas isso não porque apenas "às vezes" ele ocorra, mas porque apenas "às vezes" damos que ocorra.
Por isso, talvez, "não suportamos essa visão do fim" - entre o "clamor da derradeira cal" e "o incêndio das nossas coordenadas".
Isso é-nos insuportável: findor haver, sem haver-se começo.
Daí, a fuga para a frente: "procuramos reconstruir o nosso círculo quotidiano". Como se de tal clamor e dum tamanho incêndio algo restasse ainda de "quotidiano". O quotidiano é, quem sabe, uma espécie de torres gémeas em que, hirtusos e bem vãos, nos acreditamos intocáveis, mentindo a nós mesmos despudoradamente.
Afinal, da hecatombe da nossa dupla torre depara-se-nos que "a realidade é insondável e alheia", pois talvez até o nascer para ela nos faz ver que "vivemos sempre à beira" (aqui, o calafrio desmedido!): "à beira dos abismos que a dissolvem ou entre os espelhos que a deformam". Somos, então, abismo ou somos espelho? Ou somos deles a ausência ou a presença?
O "ground zero" do nosso nenhures fica reduzido ao gélido desmesurar-se em nós de que "tudo o que pensamos ou é de mais ou de menos"...
Por isso, "a realidade abre um rasgão" no nosso olhar, e olharmo-nos: por isso, "vemos" e "não suportamos"...
De que tecido, porém, ou de que tessitura será um tal rasgão?
Será o tecido que explode em nós em rasgão, ou será o rasgão que nos implode a tessitura?
Gratíssimo, Paulo.
Paulo,
ResponderEliminarFui lendo o poema e escrevendo o que a propósito me ocorria... quando cheguei a um quarto de página parei. Ficou-me apenas da viagem que o poema fez na minha cabeça, nas minhas veias, no meu ser, uma frase: "Ver é morrer."
E pus-me de novo a pensar... no poema e no "rasgão que a realidade abre. Contemplando a alma, o homem teme arder na sua própria morte. Teme o homem, com razão, o espectáculo do fim....
Nascemos para a realidade, mas vivemos no outro lado do espelho, da fronteira, do outro lado nos vemos... "deformado espelho"... "não suportamos essa visão"...
Grata pelo texto.
Não conheço exaustivamente os estudos sobre a poesia dele mas tenho a intuição de que esta verdade estará por estudar. Ele atinge várias vezes a expressão incisiva do único momento verdadeiro da nossa vida: aquele em que realmente 'vemos'.
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