sábado, 22 de agosto de 2009

Visão edénica



É uma espécie de cegueira.
Por isso dedico este texto singelo ao meu irmão António. Portador duma condição degenerativa da retina, foi perdendo a visão à media que se ia fazendo homem. Conheci-o na Faculdade e até hoje é uma das amizades mais fiéis e compreensivas que a vida me deu. Com ele aprendo a ver. E foi na sua companhia que tirei uma das fotografias que mais me deixou de bem com a vida.
Há pessoas que só vêem as outras através da lente da auto-afirmação. Calculam o ter e o haver das relações, ou então entretêm-se com o ofício, sombrio e implacável, do torturador que a todo o custo procura provar a inconsequência do Amor, ou a ingenuidade do Amante, ou a estupidez do que consegue ter fé na bondade, resida ela onde residir. Num universo de papés de andar a querer subir a todo o custo, ter entranhas é algo de vergonhoso e que há que esconder a todo o custo. Há fragilidades que se pagam bem caro. Quem pode dar-se ao luxo de acreditar que a compaixão é a fonte de tudo o que de indemne se pode encontrar neste mundo?
O motor imóvel desta maquinaria infernal que alimenta os egotismos é um buraco negro, esse objecto-fetiche do imaginário do cientismo ingénuo que mergulha os corações nas trevas da insuficiência do sonho. O universo deveria ser imaginado com um centro cardíaco, ubíquo, inapreensível, transbordante... Pelo contrário, tudo caminha inexoravelmente para as trevas e estas até devoram a escuridão, a alma secreta da Luz.
É, portanto, natural, que aqueles que procuram ver a partir da atopia lancinante do coração, pareçam cegos e não se consigam orientar na paisagem depressiva da rejeição da vida e da expatriação do Amor. Cultivar a poesia não é preciso, o mar é demasiado vasto para não ser navegável, as estrelas nunca apontam caminhos que não possam terminar em desastre. Ai de quem não sabe de si o suficiente para se atirar com unhas e dentes à tarefa de consumar a desolação.
Todos os actos, e especialmente os que são animados por uma intencionalidade pura, estão sujeitos à deturpação e à maledicência.
Isto dá ao Poema uma força emancipadora que temos que libertar em nós e espalhar em redor através do olhar contemplativo, nascido duma atitude de recolhimento na imensidade do Alvorecer:

"É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
"
(Eugénio de Andrade)

O pior que nos pode acontecer é o moralismo. O acharmo-nos insuficientes, o querermos que os outros se encaixem na nossa insatisfatória visão da vida. Em vez da soltura, a culpa e a recriminação. Ninguém nasce amestrado. Antes a morte que a sorte do escravo.
E depois há os que juram fidelidade à Verdade. Não há juramento mais sedento de sangue do que este. Não que a 'verdade' não exista, talvez não nos seja possível sermos 'verdadeiros'. 'Verdade' é uma florescência do olhar, a fosforescência da consciência que se deixa imergir na materialidade amniótica e nela se dissolve como se digerida por uma Fome que a tudo transfigura incessantemente. Talvez por isso o povo diga que 'quem mais jura, mais mente', acto demente, da mente falsamente alucinada, por isso os fundamentalismos nos afastam do Fundamento. Viver profundamente é deixarmos que o enraizamento nos consuma. Não há nada de demasiado elevado que não possa ser calcado aos pés dos que vão além da elevação.
Não há um elevador para subir e descer na Vida.
E não há elevação sem queda nas Profundezas. Queda desamparada. O desamparo transformante, o ermamento que desarma o despeito e a agressividade.
Só a luz pode cegar a Viúva Negra em que a alma humana se deixa transformar quando a dor indo além do suportável não é acompanhada da Visão. Ai de quem nos ama. Como o Amor se verte num jorro vulcânico de insuportável eleição. Há que sugar até ao tutano a mínima evidência de vida, o mais leve reflexo de emaravilhamento... Quem pode suportar ver-se no centro do mundo?

4 comentários:

  1. Acho que nem o "centro" do mundo o suporta...

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  2. Parecem cegos, mas cegos nao sao. A mesma luz que impede ver torna mais viva a visão do espírito, a força emancipadora do poema, da alva e do sol-pôr. Palavras muito sábias.
    Grande abraço

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  3. belíssimo texto

    grande abraço. A ti e teu irmão António

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  4. PRIORIDADES

    "É urgente descobrir rosas"

    Eugénio de Andrade

    É realmente urgente, é muito urgente,
    que as bermas dos caminhos que trilhamos
    se encham de rosas que não cultivamos,
    pois de si brotam... espontaneamente.

    É muito urgente, é mesmo impreterível
    que nas nossas escolas e prisões
    se volte a ler e decorar Camões
    por ser o nosso autor de maior nível.

    É deveras urgente elaborar
    a Poesia como deve ser,
    nada fazendo para a degradar.

    Urgente é sobretudo refazer
    de modo insuperável e correcto
    o clássico e artístico soneto!

    JOÃO DE CASTRO NUNES

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