terça-feira, 11 de agosto de 2009

O Rei Profeta

Le Prince du desert, Matteo
O rei que em sonho dorme acordou neste Agosto, e sem desgosto de ter perdido o tempo, tem a indelével sensação de que escuta o canto das gaivotas. Caminhando no deserto, esse não lugar, nesse sem tempo, tem a imperfeita impressão que elas esvoaçam brancas e luminosas por cima da sua cabeça e as suas vestes dançam sem vento, em saudade, na bruma que ele trouxera consigo da travessia e da contemplação do mar. O seu canto salpica-lhe a visão da aurora das ondas que, mesmo no mais profundo breu, são a manhã alva do mar. O rei relembra que o mar é a manhã, a aurora interminável do mundo e do seu ante-princípio. Ouve-as, em coro, como que ensinadas por um profeta que sempre ouviu, mas a quem nunca viu, a entoar a música perdida da origem. O rei não permanece imóvel.
Gosta de vê-las na luz compacta da madrugada em cantografia nos ares, no vazio que é o deserto por ser o não lugar. Gosta de descortiná-las nos lençóis de luz que contornam a sua visão, no sem tempo, em coreografia. O rei gosta da escrita invisível do som, o rei gosta da escrita impermanente do corpo e do movimento. O rei gosta do indefinido do sentido no som e do indefinido da cadência no movimento. O rei gosta que as gaivotas tenham atravessado as orlas da costa e passando rente aos pinhais lhe tragam a pena da asa do corvo, a poesia dos trovadores e a poesia do vento, a melodia sem outro fim que a pura melodia, a harmonia musical de uma medida que inebria a alma e o seu silêncio. O preenche e o implode em abrasamento e em paixão. O conduz ao silêncio ardente dos místicos e à visão espiritual do Bem. É em estado de paixão – em estado musical e em vibração – que o rei as acolhe, indiferentemente de ser em situação ou em ilusão. Para o rei, as gaivotas, o seu espectral surgimento nessa casa vazia que é o deserto, nessa catedral inacabada por onde em demanda se encontra com o que é do Alto que na luz se derrama como uma epifania permanente, leva-o a sentir a proximidade de um contacto com um rosto difuso que tanto pode ser o seu como o de Deus. O que é indiferente, visto que no deserto tudo é divino porque nada é e o Nada é sem Nome. O rei sente o inomeável e sente as gaivotas. As gaivotas são as guardiãs de um silêncio que o leva a aspirar ao manuscrito impossível e sem autor.
O rei desfeito, na poeira da luz que é também a poeira do deserto, não pertence à Terra, é uma espécie de vulto. O rei vulto que atravessa o deserto, como figuração solar, como figuração lunar, tece em sonho esse manuscrito como a Senhora de Shalott no seu tear as visões do espelho mágico que é uma consciência dotada de infância e de loucura. Do vulto do rei desprende-se um menino, desprende-se um louco. A identidade desfaz-se nas tempestades nocturnas e o vulto caminha indireccionadamente como o pobre tolo por entre memórias que não se reorganizam em torno de um eu, de um si mesmo. As memórias são visões e a dividi-las, como numa pauta, há um refrão. Um som específico que trouxe do mar e das ondas, do que é fundo e profundo, do que canta em cima de uma matéria móvel e se parece sempre com um pranto. O rei aspira ao manuscrito interrompido pelo canto das gaivotas. O seu corpo que o não é, é um pano de Lázaro que veste a memória dos que o esperam como redentor de um país de poemas por fundar. Um rei dessubjectivado - um morto que é vivo, um vivo que não combate contra a morte – que ao entardecer aparece como um conjunto de sarças bruxuleando no horizonte como numa pintura impressionista. Assim vagueia, assim passeia o rei que, ouvindo as gaivotas, não compõe a sua autobiografia – ele que não é só ser vivo, é um morto que está vivo – mas se oferece aos que por lá passam a sua heterografia. O seu devir outro. O manuscrito do rei que passa e nos seus passos na areia fica inscrito o testemunho de um vulto, de um rei louco e criança. Manuscrito de quem se sente múltiplos, de quem se sente vários. Um manuscrito compossível aos poetas e aos profetas. Só nos textos poéticos e nas vozes proféticas os vários são variações. Oscilações musicais onde os passos são compassos, onde a leitura é substituída pela audição dos gritos e dos cantos, dos espectros sonoros que tremem na luz diurna e espalham terramotos no silêncio que desce das estrelas. (Pascoaes)
O manuscrito do rei é um manuscrito redigido na Língua pura da infância e dos devaneios. Rei que atravessa o deserto, em delírio e fantasia, é como o pobre tolo um asceta, um profeta dos mortos e dos que hão-de vir. Dos que renascem. Ele pode olhar os mortos porque o seu rosto não tem olhos, é cego, da sua boca aberta, como no anjo de Klee, saem vozes indecifráveis, há um coro, múltiplos em simultâneo, em vozearia. O manuscrito do rei é a ópera dos mortos que Orfeu não conseguiu concluir por ter tocado com o olhar o que é intocável: a glória dos que renascem envoltos em panos que são asas. Porque é esse o desejo dos que, permanecendo fora do deserto, sofrem. O seu desejo clama por anjos. O rei vislumbra-os na brancura da penugem das gaivotas, o rei escuta-os, como um eleito, no seu canto. O céu é a imensa janela por onde eles hão-de chegar e cair. Rilke sabia que os anjos não discursavam, nem falavam. Os anjos são uma aparição sem conteúdo. São a forma da salvação e da Língua sem juízo ou julgamento. O manuscrito impossível do rei pode bem ser o poema das gaivotas que profetizam o reino dos anjos por vir. O manuscrito que um certo canto profético anuncia aos homens que o encontram por emprestarem a sua voz a todos os sinais indecifráveis do mundo e do que chega para além dele.

À Iolanda e ao David. Anjos que me libertam de todas as formas de sofrimento e enclausuramento na linguagem. Silenciosas criaturas que trazem inscrito nos gestos o som do deserto e o movimento do vento original. Ao Paulo que me lembra o rei mesmo quando ele vem fora do tempo.

8 comentários:

  1. (...um privilégio "ouvi-la" e ser sua Amiga...)

    ...O rei dança com as gaivotas, mas o seu olhar é deserto e o exílio de si é uma rocha na magna praia à espera do que é sem espera; à espera da luz, à espera do tempo infinito que não espera, e que é o "Alfa" e o "Ómega" da Saudade. O rei é uma pena de gaivota na sombra do espelho. O rei veste de branco, vem do deserto, e o deserto é um aceno de gaivotas e aves desconhecidas, em círculo sobrevoando o capuz do rei. O rei-sombra, o "rei pobre de um país pobre". O rei está sentado sobre a esfera dos céus e não tem rosto. O rei sem rosto é um país a olhar os navios, o canto que se esconde debaixo dos céus. O rei é uma pátria deserta entre o mar e o o canto branco da Aurora e das gaivotas; o rei profeta é um poema no impossível da Hora. É distância, é Saudade, a líquida água das gaivotas, junto à areia de si, o rei é um menino que canta em Silêncio a pátria espiritual para que o mar cresça e, no coração, se oiçam as passadas de deus,no naufrágio de muitas falas. O rei poeta abre os olhos e deixa cair tinta azul dos olhos de Isabel. E Saudades....
    atira os seus olhos ao mar e traça, nas linhas do poema, uma cantografia de lugares, para as paisagens que também nos somos, e as que nunca foram...

    (Nesta cadência me seguiria, seguindo as ondas do seu texto, a sua vibrante e lentíssima respiração, em tom menor, para a voz de mezosoprano que sabemos nos ouve...

    Sempre sua legente, sua “dissolvente” na água de beber dos olhos... Obrigada.

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  2. Isabel e Saudades

    bom saber ler
    e existir ainda
    Por vocês

    1 beijo a cada uma

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  3. Isabel,

    na contemplação desse mar escuta este canto, que não é o das gaivotas, mas é igualmente belo:


    Skellig by Loreena McKennit

    http://www.youtube.com/watch?v=9zE3oAZnsuc&feature=related

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  4. Isabel, para que o Rei que há-de fundar um reino ou um país de poetas, comece por escutar, depois das gaivotas, este poema:
    Loreena McKennitt - The Lady of Shalott

    http://www.youtube.com/watch?v=MU_Tn-HxULM

    A SENHORA DE SHALOTT

    Num dos lados do rio estendem-se
    Longos campos de cevada e centeio,
    Que forram a planície e encontram o céu,
    E através do campo a estrada vai
    Até a bem cercada Camelot.
    E para cima e para baixo as pessoas vão,
    Olhando onde os lírios florescem
    Em torno de uma ilha lá embaixo,
    A ilha de Shalott.

    Salgueiros brancos,faias estremecem,
    Pequenas brisas empoeiradas e quebradiças
    Através da onda que corre para sempre
    Pela ilha no rio
    Fluindo até Camelot.
    Quatro muros cinzentos e quatro torres cinzentas,
    Observando um espaço de flores,
    E a ancorada ilha silenciosa
    A senhora de Shalott.

    Só ceifadores,cedo ceifando,
    Entre as cevadas carregadas
    Ouvem uma canção que ecoa alegremente
    Da curva do rio,claramente
    Até a cercada Camelot;
    E pela lua o cansado ceifador,
    Acumulando montes nas aéreas terras,
    Ouvindo,os sussurros desta fada
    A senhora de Shalott.

    Lá ela tece noite e dia
    Uma teia mágica com cores alegres,
    Ela ouviu um sussurro dizem,
    Uma maldição está nela se ficar
    A olhar para Camelot.
    Ela não sabe o que a maldição pode ser
    E então ela resiste solidamente
    E outros poucos dão importância a ela,
    A senhora de Shalott.

    E movendo através de um espelho limpo
    Que rondaram-na antes de todo o ano,
    As sombras do mundo apareceram.
    Lá ela vê o caminho próximo
    Conduzindo até Camelot;
    E às vezes através do espelho azul
    Os Cavaleiros vêm cavalgando dois a dois.
    Ela não tem nenhum cavaleiro verdadeiro e leal,
    A senhora de Shalott.
    [...]

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    Tenho limitações, por isso quanto ao resto do poema consultem-no caso estejam interessados. Risos...

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  5. Ah, pensando bem... aqui fica o resto:

    [...]

    Mas ela apenas encanta em sua teia
    Para acenar às visitas mágicas do espelho,
    Geralmente através de noites silenciosas.
    Uma missa fúnebre,com plumas e luzes
    E música,foi para Camelot;
    Ou quando a Lua estava cintilante,
    Vieram dois jovens amantes se casar tarde da noite.
    “Estou meio cansada das sombras,” disse
    a senhora de Shalott.

    Um tiro do arco de suas ninfas arqueiras.
    Ele cavalgou entre as cevadas quebradiças,
    O sol veio deslumbrante através das folhas,
    E inflamou-se sobre a armadura de bronze
    Do destemido Sir Lancelot.
    Um cavaleiro da Cruz Vermelha sempre se ajoelharia
    Diante de uma senhora em seu terreno,
    Que fulgura no campo amarelo,
    Ao lado da remota Shalott.

    Sua fonte clara na luz do sol irradiaria;
    Nos cascos lustrosos de seu cavalo de guerra,
    Debaixo de seu elmo brilham
    Seus cachos negros como o carvão enquanto ele cavalga.
    Como ele cavalga até Camelot.
    Do declive e do rio
    Ele olhou de relance no espelho de cristal,
    “Tirra lira”,pelo rio
    Cantou Sir Lancelot.

    Ela deixou a teia,ela deixou o tear
    Ela deu três passos através do quarto,
    Ela viu o lírio d´água florescer,
    Ela viu o capacete e a pluma,
    Ela olharia para Camelot.
    A teia rompeu-se e flutuou na vastidão,
    O espelho rachou de lado a lado;
    “A maldição caiu sobre mim,” chorou
    A senhora de Shalott.

    Num vento tempestuoso do oeste repelindo,
    As selvas amareladas estão empalidecendo,
    O vasto riacho em seus flancos queixando-se.
    Chovendo o céu baixa pesadamente
    Sobre a cercada Camelot;
    Ela desce e encontra um barco
    Sobre um salgueiro deixa-se flutuar,
    E em volta da proa ela escreveu
    A Senhora de Shalott.

    E descendo a superfície nublada do rio
    Como um corajoso vidente em um transe,
    Vendo todo o seu próprio infortúnio,
    Com um semblante vidrado
    Ela olhou para Camelot.
    E no fim do dia
    Ela desprendeu a corrente,e se deitou;
    O vasto riacho a carregou para bem longe,
    A Senhora de Shalott.

    Ouviu um canto alegre,melancólico,santo,
    Cantado altamente,cantado fracamente,
    Até que seu coração foi lentamente congelado,
    E seus olhos foram totalmente escurecidos,
    Virados para a cercada Camelot.
    Por aqui ela encontrou sobre a maré
    A primeira casa do lado d´água,
    Cantando a sua canção ela morreu,
    A senhora de Shalott.

    Sob a torre e o balcão,
    Pelo muro do jardim e a galeria,
    Uma forma cheia de brilho,ela vagueia,
    Pálida, morta entre as casas altas,
    Silêncio em Camelot.
    Fora,entre os embarcadouros,eles vêem,
    Cavaleiro ou cidadão,lorde ou dama,
    E na proa eles lêem seu nome,
    A Senhora de Shalott.

    O que é isto? E o que está aqui?
    E em um iluminado palácio bem perto
    Morreu o som da verdadeira vidente;
    E eles se cruzaram pelo medo,
    Todos os cavaleiros de Camelot;
    Mas Lancelot encerrou-se num pequeno espaço.
    Ele disse: “Ela tinha uma face adorável;
    Deus em sua misericórdia conceda-a Sua graça,
    A Senhora de Shalott.”

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  6. isabel,
    de baal o cavaleiro do abc, as palavras cantam em teu louvor, não te enclausuram, são a liberdade e o sentimento.

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  7. Ó Isabel, tanta gaivota, tanta gaivota, e neste deserto não de vê a Senhora da Noite? É que um bom poeta precisa sempre de uma musa inspiradora. De preferência boa...

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  8. Muito querida Saudades,

    o rei está imóvel, penso muitas vezes. Mas depois sinto-o a caminhar até mim, mesmo sem o chamar, mesmo sem saber que o lembrei. Vem-me à memória trazido pelas gaivotas, pela pena do corvo que está em frente ao seu espelho e recebo no vento e traz o cheiro a pinhal, ele que é uma espécie de Senhor de Shalott e que fez do deserto a grande ilha do poema e das saudades. Sim, herdeiro do rei saudades, de Pedro (como lhe chamou António Cândido Franco), este rei acrescentou-lhe a profecia. Este rei nobre no pais pobre é o verdadeiro par de saudades do futuro. Ele tem saudades do tempo que há-de vir.

    Mas os "olhos azuis" de Isabel são os olhos de quem, para agradecer, olha para o céu e em nudez pede às estrelas brilho para no enlace te dourar de amizade e mistério. Pois foi nos mistérios da Língua e da Amizade que nos encontramos e florimos. Dentro e fora do Jardim. É com muita amizade que agradeço que me leias. Receber a leitura de quem escreve como tu é uma dádiva que preenche os dias do pó das estrelas que nunca param, dentro de nós, de luzir.

    Platero
    recebo o beijinho e olhando bem dentro dos olhos escrevo-lhe uma rosa dentro da ternura dos seus. Quanto a ser leitor, o mesmo que disse à Saudades e a todos reafirmo. Ser lida é um aconchego silencioso que tem qualquer de maternal a quem o oferece a troco de nada. A leitura é uma mãe para a Vida e para os que estão vivos.

    Maria da Luz
    tenho a vaga impressão (risos) que já escutei muitas vezes essa música. Mas é sempre bom ouvi-la e sobretudo aqui.

    Brunhild
    Este poema e ainda bem que pensaste melhor - a Serpente só merece beleza derramada assim - é bigger than life! Grande alma a tua para o ires logo buscar. Ai Brunhild, Brunhild bem sei do texto de Diógenes...
    tem paciência comigo e recebe por agora muitos sorrisos e agradecimentos pela imaginação sem fim que te atravessa as veias.

    Baal
    qual cavaleiro do abc, qual quê! Cavaleiro do deserto! Corro para o meu cavalo alado, para ver se te apanho, e vamos mas é conversar sobre a infância, a magia e Benjamin. Isso já é liberdade. Nem precisamos de copos - que os dispenso sempre - a infância, a magia e Benjamin já por si são a embriaguez. Obrigada e um abraço ao leitor que és. Também a ti o que acima escrevi se aplica.

    Teixeira de Pascoaes

    depois...responder-lhe exige algum deserto...que agora não sinto apesar do grande calor que me faz desmaiar de sufoco...

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