É fácil, quando se nasce à beira do Lago, viver o símile do espelho, cada rosto, cada gota dessa água viva que nos entorna, em mil cambiantes, anamorfose caleidoscópica, devolve uma imagem da sede de aprovação que o fita. Ainda me lembro, quase trinta anos depois, do conselho do velho analfabeto, quase cego, quase centenário, já sem idade e agora, perdido no tempo, com um nome que vai morrendo a cada ano, era o homem mais velho da aldeia e era a memória mais completa daquelas gentes, a sua morte foi o ocaso dum mundo de acenos e vislumbres, de dores e de resignação, uma monadologia completa, compreendendo todos os conviventes e o padre Eterno, e todos os anos, no Outono os meninos que ele trouxe ao colo e levou à pia baptismal, quase toda a gente lhe chamava “padrinho”, a «um pobre diabo! Só o Doutor Pimentel tinha mais afilhados… mas um padrinho sem lustros e sem tusto…», iam-se finando, deixando a saudade a pairar entre as bocas desdentadas dos velhos que ficavam, com os olhos virados para dentro, para o mundo que a memória regurgita nas viragens da tristeza de cada um.
O seu conselho: «Nunca deixes de ser gente! Faças o que fizeres, nunca deixes de ser gente!»
E o que é deixar de ser gente, Sr. Augusto? Ser gente, menino da cidade, é viver pela palavra, ser conhecido pela palavra dada, ser reconhecido na palavra recebida, ser gente é não ser nada meu menino, é ser tudo o que a vida quiser, é respeitar cada um, seja quem for, e é não julgar, se julgares alguém não estás a ser gente e não terás onde te esconder da vergonha, sabes o que é a vergonha, menino? É a tua palavra não valer nada. Entras na venda e só compras o que o dinheiro que tiveres no bolso te deixar comprar. Há coisas que o dinheiro não compra. Há coisas que, quem é gente não vende. Já foste à Represa das Almas? Fica ali nos terrenos que a Viúva Pimentel deixou a Santa Bárbara… Se olhares lá para dentro verás se és gente. O que vires lá dentro te dirá.
Há poucas semanas um homem da aldeia suicidara-se lá, dependurado num ramo duma figueira, os seus pés ficaram a um palmo das águas esverdeadas, a sua ambição fora mergulhar mais fundo, mais fundo ainda do que o poço da sua solidão, o “arratado”, assim lhe chamara o povo e com isso, talvez, o ajudaram a selar o destino. Sempre se sentira feio, pasto de pancada e de escárnio, sem maldade suficiente para assassino a sangue frio, resolveu afogar a aldeia toda num laço de corda numa noite de Finados.
Não era agradável, ou fácil, a aproximação a esse lugar cuja natureza oracular estava mesclada com o medo e a perdição sem retorno. Só há poucos anos me aproximei desse local, com muita dificuldade por causa do abandono a que foram votados os campos de cultivo adjacentes. A aproximação da água só era possível a partir dum único ponto, um penedo que se sobrepunha ao emaranhado de silvas e de flora bravia, pejada de cardos com os seus picos mordentes. O cheiro a giesta mesclado ao agridoce das águas do pequeno lago levou-me a mente para longe, para um tempo e um espaço com uma amplitude só comparável às lembranças da infância, em que tudo parece belo como estiver, seja como for que se encontre, desde que aconteça encontro. E lembrei-me do conselho do Sr. Augusto e, com uma nitidez impressionante, da nossa última conversa, uns dois ou três anos depois desse encontro decisivo. A sua condição física tinha-se deteriorado muito, falava devagar, mas sempre com o seu sorriso de criança eterna, o seu atributo mais recordado por todos os que o conheceram. Estava quase surdo e a vista continuava enevoada porque tardavam notícias da operação às cataratas em Coimbra, «já não vale a pena gastar dinheiro no táxi para ir às consultas, achas que vale a pena ser operado por mãos que não são capazes de cumprir a palavra? Sendo a vista um dos mais belos dons de Deus?», ainda acredita na palavra dada, Sr. Augusto? «A palavra não se dá, rapaz, a palavra não é nossa, não é para nós, a palavra é-nos dada para dizermos aqui estou, daqui ninguém me tira, nem trinta mil diabos!». E ao referir-se aos exércitos do demo persignou-se, quase que numa atitude de escárnio e cuspiu para o chão.
Tínhamos acabado de assistir a um episódio da novela “O Bem Amado” e divertíamo-nos com os trejeitos da personagem Zeca Diabo, o Sr. Augusto ficou divertido ao saber que eu tinha um vizinho em Lisboa que era a cara chapada do Zé Cadeado, era assim que o meu companheiro de serão televisivo na venda do Joaquim Sapinho pronunciava o nome, talvez para não ter que cuspir no cão e persignar-se sempre que o fizesse, mas a deformação fonética também se poderia ficar a dever à surdez. Mas é certo que a personagem não tinha, aos olhos sorridentes do nonagenário, qualquer conotação diabólica, antes pelo contrário. Era a única personagem da novela que se dava ao respeito, a única que era gente, «já reparaste que o Zé Cadeado é muito parecido com o Arratado? Lembras-te dele? Andava sempre bêbado e aos caídos… Mas o Zé Cadeado é a prova até que até os infelizes podem ser felizes, depende é da forma como aproximam os beiços da Represa das Almas, há quem não possa aguentar com o que vê lá dentro!».
«Não há nenhuma Represa das Almas no Brasil? Ó Alfacinha, há represas das almas em toda a parte!».
Estas palavras foram levadas de enxurrada pelo som vibrátil do regato em harmonia com o coaxar das rãs e o refrão do canto dos grilos e vi-me face-a-face com o espelho de água onde pude ver o meu reflexo. E apercebi-me da multidão que dava corpo àquelas formas fugidias, desfiguradas pelo pouso suave das libélulas, os trinta mil diabos, todos perfilados, todos angélicos e reluzentes, o coro das sereias que compõe a banda sonora duma vida de homem, «vai por aqui, faz isto, compra aquilo, tem isto, tem aquilo, quer isto, deita isso para o lixo, vive o luxo enquanto podes…». Mas todos são o mesmo rosto, o Ego que se projecta no entorno em que nos situamos e surge em todos os apelos e forja todas as promessas e levanta todo o tipo de altar ao único deus a quem se fazem todos os sacrifícios, um deus esquivo, incapaz de aquietação.
A megalomania, a compulsão para ser mais do que qualquer outro, o querer ver-se projectado numa tela de cinema, iluminada de todos os lados por focos de aprovação, o achar-se idolatrado, como deter as chamas do fogo que não queima e não é fogo, mas teima em consumir tudo o que possa ser submetido ao objectivo supremo do auto-endeusamento?
As vidas vazias precisam da aprovação de cada um dos trinta mil diabos, e pensar isto chegou ao ponto de se prolongar num arrepio provocado pelo frio da brisa vinda da sombra profunda da figueira, é um exército imenso que pode, se bem administrado, preencher toda uma vida. «O que vais deixar na terra? – Perguntou-me o Sr. Augusto com uma voz grave e sem o seu sorriso tão familiar – nada! Passa com a leveza do vento, não queiras agarrar o que te não pertence, bebe a água fresca da fonte enquanto há sede e quando não houver sede, sabe reconhecê-lo…».
mais conversa de paneleiros
ResponderEliminarParece que este blogue incomoda certas pessoas (não parecem ser muitas, talvez uma ou duas). E para se darem a tanto trabalho é porque querem algo que muito desejam.
ResponderEliminarPelos vistos vale a pena vir aqui colocar algumas panelas.
No passado cheguei a mostrar o meu desagrado por serem permitidos aqui comentários anónimos. Também não vou cometer a injustiça de dizer que imagino quem esteja a fazer isto.
Mas devo tirar o meu chapéu ao Paulo Borges: para a frente é que é o caminho! (mesmo não havendo "caminho", ajuda acharmos que há "O" caminho, mesmo que o objectivo seja perdermos o apego ao caminho - nada melhor do que a Perdição).
paulo tens razão... aos cobardes senta-os colo, conta-lhes histórias e vai-lhes ao cú...
ResponderEliminarSó cobardes anónimos como eu sempre disse !!
ResponderEliminarCaro Paulo,
ResponderEliminarapesar de todas as condições que me levam a estar também cada vez mais longe da Serpente, a verdade é que ela está no meu coração.
Por isso, por mais que me revoltem os fígados, volto sempre para ler os amigos. E, muito sinceramente, já não respondo às provocações. Sempre que eu possa, elimino-as mesmo, sem pudor, nem rancor nenhum.
Queria apenas dizer que adorei a última frase do post. Fantástica 'estória'.
Beijinhos ao regresso*
Paulo, só não apaguei este comentário porque a profunda autenticidade e sabedoria do teu texto o torna ainda mais ridículo. Não prescindo de tornar possível a fantasia neste blogue. E apelo a que ninguém o abandone por nele vegetarem uma ou duas almas vazias... Retirar os comentários anónimos mata a vivacidade do baile de máscaras: veja-se o blogue da "Nova Águia", charco de águas mortas.
ResponderEliminarPaulo, só não apaguei este comentário porque a profunda autenticidade e sabedoria do teu texto o torna ainda mais ridículo. Não prescindo de tornar possível a fantasia neste blogue. E apelo a que ninguém o abandone por nele vegetarem uma ou duas almas vazias... Retirar os comentários anónimos mata a vivacidade do baile de máscaras: veja-se o blogue da "Nova Águia", charco de águas mortas.
ResponderEliminarParece que este blogue incomoda certas pessoas (não parecem ser muitas, talvez uma ou duas). E para se darem a tanto trabalho é porque querem algo que muito desejam.
ResponderEliminarPelos vistos vale a pena vir aqui colocar algumas panelas.
No passado cheguei a mostrar o meu desagrado por serem permitidos aqui comentários anónimos. Também não vou cometer a injustiça de dizer que imagino quem esteja a fazer isto.
Mas devo tirar o meu chapéu ao Paulo Borges: para a frente é que é o caminho! (mesmo não havendo "caminho", ajuda acharmos que há "O" caminho, mesmo que o objectivo seja perdermos o apego ao caminho - nada melhor do que a Perdição).
paulo tens razão... aos cobardes senta-os colo, conta-lhes histórias e vai-lhes ao cú...
ResponderEliminarAinda comecei aler mas perdi-me, uma coisa sem sentido
ResponderEliminarNao percebo os comentáriso neste blogue,sao outra parvoice
ResponderEliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
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