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segunda-feira, 15 de junho de 2009
"A imensidão é o movimento do homem imóvel" (Gaston Bachelard)
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).
Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.
Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.
Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.
A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.
Gaston Bachelard
A Poética do Espaço
trad. António de Paula Danesi
Livraria Martins Fontes
S. Paulo, 1989
(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle,L´escalier
Fonte(imagem): http://www.pianolessons.net/img/lessons/bluespiano.jpg
Caro Lapdrey, como isto é verdade! Também comprovado, sem precisar de o ser, pela prática da visualização criadora...
ResponderEliminarAmigo Lapdrey,
ResponderEliminarLi de tantas maneiras a “Poética do Espaço” de Bachelard, por razões de estudo, mais do que de prazer, que só agora – passados já alguns anos - este excerto aqui chegado me alimenta o devaneio a que, na realidade criada, sou chegada e tantas vezes projectada na imensidão que, mais do que o mar e a planície, ou na mesma medida destes, imaginados, me lança antes no exílio do mundo e na “posse” de outro, mais alargado e diria mesmo “melhor”, sem com isto significar o valor da ética, falo de estados da mente.
É verdade! No momento em que li o excerto sabia que por ali andava a imensidão. “Maior do que o seu tamanho” é a imaginação. A fenomenologia do inexistente no mundo, embora existente no ampliar do espaço/tempo, na consciência imaginante, que, como sabemos, ultrapassa as dimensões, ou melhor, está para além das mesmas, levando - a esses que ao devaneio se entregam, com tranquilidade e prazer a um mais profundo e mais vasto universo.
Não sei se a “visualização criadora” de que fala o Paulo é fenómeno semelhante ao que experimento, quando toco o alto e o fundo a horizontalidade e a verticalidade da “montanha” e do “mar”, desde a escrita ou da imaginação. A visão do universo e do cosmos que experimento em devaneio imaginante que alarga a mente, para além mesmo das sensações que, no entanto estão lá, mas a uma distância considerável do “espaço” onde deveria estar o mundo. Parece, então haver uma outra dimensão para os fenómenos que abrange e alarga a nossa vivência da realidade. Acho que é contemplação, no acto da mesma escrita. Corpo atirado sem rede e sem medo, pura contemplação, sossegada, tranquila e segura, essa transformação do espaço e do ser. Essencial é a respiração nesses momentos, vos digo eu!
Às vezes, é mesmo preciso que nos seja descrito o sintoma, para diagnosticar a "doença". Isto se não formos sugestionáveis ou "hipocondríacos"!...
N.B. Chego a pensar se não será o silêncio da mesma "qualidade" deste espaço imenso da imaginação!...
Um abraço no que nos une e... no restante também.