Pela última vez, durmo na casa do Alto. É uma noite sem lua mas com um céu vivo de estrelas. Mas a minha atenção prende-se à cidade, à planície. Para os lados da estrada de Viana descubro um espectáculo extraordinário que me alvoroça, que me fascina: numa vasta extensão de terreno, um incêndio lavra interminávelmente, iluminando a noite. É uma "queimada", suponho, o incêndio do restolho para a renovação da terra. Alinhadas pelos sulcos, as chamas avançam como um flagelo inexorável. E aos meus olhos saqueados é como se uma cidade ardesse, uma cidade fantástica, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos. Cidade, minha cidade... Que a terra tenha razâo sobre ti, que essa força que mal sei te absorva, te revele em cinzas, tire delas outra fecundação e outro ignorado recomeço - que me importa? A minha vida é "a" vida, só existe o que sou: não se imagina quem se não é..
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao desastre. Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possivel construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o sei, não o sei...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.
Para mim este texto é sempre uma "romaria" e uma "peregrinação".
ResponderEliminarVivo perto da "casa do alto", li e reli "Aparição" na juventude, antes mesmo de chegar a Évora... depois foi sair na estação e subir a mesma rua sem saber que era aquela...
À queimada do alto, assisti, mas era o nascer do Sol para o filme "Cristina e os sinais...." Que Saudades de tudo! Até de fumar.
Belo e humanamente belo!
Nunca se fecha verdadeiramente o ciclo!
Um bom Domingo.
saudades
ResponderEliminarapetecia-me chamar-te à maneira alentejana. à minha Terra, pelo menos. Que é, sabes como?:
Soidades. Serias então "Soidades do
Fturo". Bom, mas vá
Também eu li Aparição. Só que há tantos anos que na prática já se me varreu da exígua e vulnerável cachimónia.
Onde fica essa tal de "Casa do Alto"? dos Cucos não, seguramente.
A ideia que ainda guardo na memória é de que o senhor tivesse habitado um quarto num daqueles palacetes junto à entrada principal do Jardim/Mata. Nas imediações do eixo
Praça do Giraldo - Estação dos Caminhos de Ferro.
Tudo bem. Foi bom ouvir-te
Olá, Platero,
ResponderEliminar...não é no Alto dos Cucos, esse não, que ficaria em muito má companhia... (brinco), mas no Alto de São Bento, não sei se numa das do Piçarra se aquela outra,mais próxima dos moinhos...
O resto, são episódios lá passados mesmo, a ver nascer o sol, mesmo na aparição de nós a nós mesmos.
Ainda quem Vergílio conhecia bem erá a Beatriz Serpa Branca, a... como se chamava a antiga governadora civil? Mariana...
e o mesmo Piçarra, mas como aluno, creio... tudo muito antes de Évora mostrar o perfil da Sé para esta tua amiga...Enfim!
Evidentemente que quando vim para Évora já o Professor Vergílio estava no Norte, não me recordo, onde...
Agora quanto às "Soidades", vá lá...
Um abraço, amigo.
É isso Platero.
ResponderEliminar"Je pense, donc je suis". Descartes falava francês.
...Em "alentejanês" é "Existo, logo penso!" (risos), cara alentajana.
ResponderEliminarP.S. O "provincianismo" é uma coisa séria!
Cumprimentos.
Existem algumas variantes berlinenses,em poema, mas a versão mais conhecida é em latim "Cogito ergo sum".
ResponderEliminarEm português intelectual: "Penso eu de que... logo existo." Mais ao vosso gosto.
Mas Descartes continua a ser o meu preferido na pronúncia da frase mais famosa da história da Filosofia.
O que passa por verdade, nunca fez qualquer sentido, não é verdade?
Cumprimentos ainda maiores!
vergílio ferreira, para o denegrir chamaram-lhe 'o sartre de fontanelas' opinião com a qual nunca concordei, penso que alegria breve´é uma das grandes obras da literatura portuguesa.
ResponderEliminarExperimenta´ ler... sartre. o verdadeiro.
ResponderEliminaro ser e o tempo não aconselho, li a náusea aos 13 e sinceramente nauseou-me, gostei dos caminhos da liberdade, essencialmente dos tiulos, a idade da razão, com a morte na alma, a pena suspensa.
ResponderEliminarjá o mathieu, o professor de filosofia não me pareceu um grande lutador.
Já que estamos numa de alfarrabista, lê o "Aventureiro simplicius simplicissimus", importante obra da literatura alemã de Hans? J. Von Grimmelshausen (carrega nos rrrrr). É um romance picaresco que fala de um simplório na Europa da Guerra dos Trinta Anus. Lé.
ResponderEliminarainda por cima é o ser e o nada le etre et le neant, o sartre lá se aguentou, o que é supreendente porque a simone era uma coisa inominável (como provou num dos piores livros do mundo, a cerimónia do adeus)
ResponderEliminarah... o nomadismo literário... de profundis...
ResponderEliminaruma prenda:
http://www.youtube.com/watch?v=TkyIf93sVAo
Quirk - Cognitive dissident
Fazes-me sentir alemã.
ResponderEliminarFausto. Tragédia em duas partes. J. Wolfgang Goethe.
uma oferenda directamente da Alemanha.
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=N3w-8E4fnxo
Tim Schuldt - Gamma Goblins
o clássico.
esta dos erres, destruiu-me, porque sou de uma terra onde verdadeiramente carregamos nos erres (setúbal)
ResponderEliminarYa
ResponderEliminarBuddenbrook. Ma Mann. O destino de quatro gerações.
pronto leva a taça nguyen se isso te faz feliz
ResponderEliminarSim. Hino da Alegria. Bee th oven
ResponderEliminarDurmam bem.
Cara saudadesdofuturo,
ResponderEliminarO Alentejo é o meu espaço preferido em Portugal.
Uma boa madrugada e uma boa semana para todos.
Não tenho dúvidas de que o Alentejo é calmo, tranquilo e belo... mas também outras regiões o são.
ResponderEliminarO que dizer da luz de Lisboa sobre o rio e sobre o casario e as flores das varandas, em horas banhadas de paz, mesmo na grande cidade?
A natureza faz-nos falta, tal como a beleza que nos aproxima da felicidade e da tranquila respiração do mundo... onde nos sentimos mais próximos da nossa verdadeira "Casa". Essa casa também é Silêncio.
Uma boa semana
saudades
ResponderEliminarhá no Alto (S.Bento)uma respeitável série de casas capazes de ajudarem a escrever mesmo quem não saiba ler. Verdadeiros palácios sombreados pela vegetação local, sempre com uma vista privilegiada sobre os tentáculos a poente da cidade.
A que me ocorre de momento, propriedade actual do Centro de Formação e Emprego, é chamada Quinta das Glicínias. Cor-de-rosa, muitas sombras, muitos lagos, muita natureza.Deve ser de construção já do séc.XX
Outras mais antigas, aparentemente
a cheirarem a História e a romance,
pastam por ali pelas encostas.
Já do outro lado da Estrada de Arraiolos fica a não menos gloriosa casa de André de Rezende. De quem há muito por dizer ainda, não sei se mais do que possa esperar se diga ainda de Virgilio Ferreira.
Espaço lindo aquele, sem dúvida
Oh, sabermos de tudo e de todos... Coisa mai linda!
ResponderEliminarTão asssssustadora!