"Outra leitura para a crise"
"A mentalidade antiga formou-se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra grande superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas a nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade. O centro comercial ocupa um espaço importante na formação da mentalidade humana. Acabou-se a praça, o jardim ou a rua como espaço público e de intercâmbio. O centro comercial é o único espaço seguro e o que cria a nova mentalidade. Uma nova mentalidade temerosa de ser excluída, temerosa da expulsão do paraíso do consumo e por extensão da catedral das compras.
E agora, que temos? A crise.
Será que vamos voltar à praça ou à universidade? À filosofia?"
- José Saramago, in O Caderno de Saramago.
Há algum tempo que abordo esta questão, de modo mais desenvolvido, nas aulas de "Filosofia da Religião". Na verdade, crentes ou descrentes, raros são os que se furtam a uma nova religião inconsciente: o consumismo. Novos sacerdotes, em complexos, múltiplos, obscuros e ocultos níveis hierárquicos, concebem e produzem as novas e sedutoras divindades, produtos, bens, serviços. A revelação e o anúncio da salvação é feito pela nova profecia e pelos novos profetas, publicidade e publicitários. Como recompensa do sacrifício do tempo, do trabalho e da conta bancária, e primeiro que tudo da inteligência, trocada pela crença de que assim se vai ser feliz, as novas divindades, completamente patentes e disponíveis, sem qualquer mistério, descem dos novos altares, as montras, ecrãs e catálogos, para oferecerem o êxtase imediato e efémero da sua posse. Que logo deixa o devoto insaciado e cada vez mais sequioso, como se bebesse água salgada para se dessedentar. Porque ignora não ser isso que no fundo busca e não ser aí que o pode encontrar.
Outros comportamentos e sucedâneos neoreligiosos facilmente se constatam, no futebol, na política, no rock. Tudo, tal como nas religiões tradicionais ou nos espiritualismos new-age, por se imaginar que algo falta possuir, ou que algo falta acontecer, para se ser o que todos queremos ser: felizes.
É demasiado evidente para se reparar nisso. Como é demasiado evidente que, enquanto este novo e mais profundo obscurantismo dominar as mentes e as multidões, haverá sempre um tipo de poder e de economia, de degradação do mundo e da vida humana que impossibilitará qualquer transformação profunda a nível social e político. No fundo para que trabalhamos todos nós, todos os dias, senão para sustentar e reproduzir isto? E quem chegará ao poder senão por e para sustentar e reproduzir isto? Quem poderá mudar isto do exterior, por decreto? E quem poderá mudar esta mentalidade, a nível colectivo? Quem reconhece e desmonta a ilusão que tudo move?
Paulo,
ResponderEliminarmeu comentário - já com alguns anitos:
se o mundo estivesse à venda
em qualquer supermercado
já lá estaria a legenda
- Não há mais Mundo, ESGOTADO
abraço de (a)preço
Platero, é isso. Não há limites para a sede de posse. É difícil libertar a mente disso, que assume dimensões muito subtis, presentes mesmo na arte, na filosofia e na espiritualidade.
ResponderEliminarUm Abraço
Sim, também há sede de ler, escrever, criar, ser deus... Poucos suportam permanecer no "centro do seu nada", como diz Miguel de Molinos, a quem também silenciaram.
ResponderEliminarO pior de tudo é achar-se isto normal e natural.
ResponderEliminare o'obrigam-nos' a baptizar os filhos nova religião desde quase a nascença.
ResponderEliminargoverno o mundo
ResponderEliminarSim, pelas nossas mentes.
ResponderEliminar"Calma, pequeno louco, rosnou o lobisomem. Quando chegar a tua vez de saltar para o Nada, transformar-te-às também num servidor do poder, desfigurado e sem vontade própria. Quem sabe para o que vais servir. É possível que, com a tua ajuda, se possam convencer os homens a comprar o que não necessitam, a odiar o que não conhecem, a acreditar no que os domina ou a duvidar do que os podia salvar. Por teu intermédio, dos pequenos seres de Fantasia, fazem-se grandes negócios no mundo dos homens, desencadeiam-se guerras, fundam-se impérios…"
ResponderEliminarMichael Ende, in "A História Interminável"
Um grande livro, Madalena.
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