sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Sem Título

Durante três noites escutei o canto do pássaro. Poisado no parapeito da janela ou no fio do estendal, não sei, o pássaro veio prenunciar-te sob a forma de um encanto. Três dias volvidos e apareces-me assim. Foi ao passar por entre as folhas, na perseguição de uma antiga recordação – tinha seis anos e no baloiço pendurado na árvore, uma pomba branca poisou no meu rosto – digo pois, de uma antiquíssima espera, a do Espírito sobre mim, que assim te reconheci.
Vinhas vestida de azul e trazias nos lábios o sagrado mutismo dos infelizes. Vinhas manhã grega em dia de tenebrosa tempestade. Poisada no meu e mesmo chão, sob a forma de um clarão, como um rasgão e como um vaso pleno do que por mim foi esperado, colheste-me em flor de memória em sangue e viva. As flores que nos colhiam, e que os teus pés encobriam, sofrida a espera de uma revelação ou de uma redenção, eram de uma espécie e cor de sangue diferido, transferido, indefinido. As flores cobriam no chão alguém-ninguém que por ti tinha sido ferido ou em ti tinhas sofrido. Foi então que percebendo, sem saber como e por causa de meu nome, Isabel, todo o mistério das rosas, que corri a buscar aquela passagem em mim, que sei sem corpo de texto, da criança pelo espírito tomada. Essa criança, que me percorria e para ti também corria, vinha para ser tornada mulher, primavera e rainha. Vendo-te assim tão próxima, tão etérea, tão quase divina, não parei de tremer, por saber que foi a minha espera que te coroou, foi ela que te transformou em menina, criança e rainha.
Assim, pela primeira vez não cega me vias e eu te recolhia, e havia no teu corpo um ser outro do qual também eu – no teu sem nome como a flor da memória – me compadecia. Era do medo, era do segredo, mas era algures e não alhures, que outros sons originais, em nós se percutiam, assim menina, criança e rainha, parecia que ao receber-te ensandecia, desvairada e louca, enquanto escrevia.
Era do espanto, era do encanto, mas lentamente se pressentia que a menina, a criança e rainha me sobrevinham de um mundo, para mim ignoto, em que jamais somente se sofria, enquanto eu nas palavras e nos símbolos, num relance súbito, me expandia. Menina, criança e rainha, perguntava, com que asa da infância cobres ainda o meu rosto de medo com outras antigas penas da lembrança?
Tu, menina, criança e rainha, nada me respondias. Tinhas a boa fechada e já nada arrolavas. Dos teus lábios cerrados e a meus olhos confinados confiavas o segredo e o medo e eu, sob a divina mania, no pano da escrita perscrutava-te antiga e ouvia, escrevia e, tolhida e recolhida, neste silêncio dentro do tempo, te inscrevia.
Era do tempo, era do desalento, que o teu sorriso se escondia, ele que preso à mão do inverno lentamente te arrefecia e por dentro do teu rosto o esmaecia. Era eu quem, menina, criança, rainha, to pedia para o depor junto ao canto dos pássaros e da rima da poesia. O teu sorriso, menina, criança e rainha ainda dentro te ti ressurgia. Era para dentro de ti que a escrita ria e fugia. Escrita dançarina que contigo se envolvia em movimento-vento, em movimento-lento. As duas tristes dançarinas insufladas pelo vento pairavam sob o poema-canto, no canteiro, no poema com a forma de um campo-campa. As duas dançarinas, a escrita e a rainha, acompanhavam os passos em luta, em luto, do poema em que os mortos e os vivos renasciam. E eram penas o que assim, da escrita saía e na saia da dançarina, docemente nos envolvia. A das aves e a dos mortos.
Era como rosto e como corpo, mas já sem desgosto, que assim toda inteira e rarefeita, em castas gotas, me surgias e ungias, a pobre que assim escrevia e te recebia. O poema que da flor da terra remanescia eras tu, menina, criança, rainha, propulsionadora, no meu pulso do impulso, no curso do decurso, da escrita como incerta cartografia e caligrafia das lágrimas na paisagem de um rosto refeito do desgosto. Tu, quase divina em nós, sobre mim descias e comigo, aos céus, subias.
Durante três noites escutei o canto do pássaro que vinha do mar – também tu de lá vinhas coberta de lágrimas e escamas, sereia, criança e rainha –, durante três dias escrevi em pranto, em flor de memória e impotente, contra a força da Palavra, mas em vão, Menina (!), o pássaro escrevia agora com os movimentos da minha mão. O pássaro, que vem do mar e se reveste da espuma da onda e só em canto do silêncio se pronuncia, vinha sobre mim como um símbolo que enfim se aproximava para me chamar e ao fundo da arca da Língua me entregar. Eu que nunca compreendi o mundo, eu que nunca contei o tempo, eu que sempre caminhei na direcção do vento, era assim daqui roubada e, de súbito, raptada para o interior de uma aparição, para o esplendor de uma transfiguração.
Roubada ao mundo e ao tempo, presa a uma asa de escamas e imersa numa saia de arcaicas lamas, entregava a vida ao movimento enamorado do olhar da alma com a mão. Comum à escrita, na viagem dentro da arca, levavas-me sem rumo por entre o fumo, para além daqui, Além, para em mim cumprir a tarefa espiritual de a vida e a morte renomear e cantar.
Dentro de ti serei(a) a que, cantando o verbo morto, deixará o poema renascer e como a flor, reflorescer.
É enquanto as rolas arrolam e os cabelos se enrolam que a voz cantando, semeia no corpo, terra canteiro, o poema. Canto em Língua pura, pátria imemorial para os mortos que florescem. O poema, revelas, é a outra eucaristia.




Para a Luíza e para a Sereia. A quem devo a partilha do incomunicável e da verdade. Para as duas chega muito atrasado, bem sei, mas é só numa certa contagem do tempo. Este texto é para o tempo incontável a que chamaremos outros nomes. Uma breve nota também de agradecimento ao João Serra que me ofereceu a fotografia de uma certa composição em que se escreve para haver entrega aos outros, na absoluta entrega e confissão do que se é aos Amigos.

18 comentários:

  1. Absolutamente enlevador, desperta ecos não sei de quê no profundo de nós. Há palavras que despertam como Silêncios de Fogo.
    Obrigada.

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  2. Isabel

    Lindo. Por vezes trágico - mas lindo
    Beijinho

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  3. "Tinha passado toda a noite
    ele mesmo se sentia perdido
    diante dessa presença sem palavras
    que lança trevas nos símbolos
    e torna os argumentos
    insustentáveis

    é possível que resida nisto
    sua parte mais importante
    a partir deste ponto desaparece"

    José Tolentino Mendonça, Baldios


    Isabel,

    Ainda em silêncio por dentro, como o pássaro que te visitou vindo do mar e com asas de espuma, ainda sem palavras... agora penso que sim, é assim que quero olhar a alma neste momento... com a mão.
    Passar a mão pelos cabelos compridos da minha alma e, ainda sem som, mergulhar bem fundo nela.

    Sem som, porque o canto das Sereias, dizem... é belo de se ouvir, mas tem consequências trágicas para quem o seguir e dele ousar fazer com que haja felicidade*

    Agradeço a Amizade com o coração, Isabel.

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  4. τὸ ποίημα εἶναι ἡ ἀληθινὴ εὐχαριστία...

    ὑπέροχο...

    εὐχαριστῶ πολύ, ἀληθινά...

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  5. continuarei a cantar, na noite, a todas as solitárias e tristes meninas

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  6. Porque será o poema a verdadeira eucaristia, Macários?

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  7. “do medo”[sim], e ”do segredo”, “em nós se repercut[em]” “as flores que nos colh[e]m”...
    Aqui, pois, deixa Donis - em eco de “algures e não alhures”-, “outros sons”... da sempre mesma pátria-poema, dessa "outra eucaristia": imemoriais, "como mortos" florescemos... “como rosto e como corpo”: “em canto do silêncio [que] se pronuncia”



    Em língua d’almo: alma, flor por raiz
    (litania de isabelino aceno, em saudades enviada a Santiago da Rosa)

    flor de lys
    lysar d'em fror
    frore de lysgraar
    graalar da flor
    flore d’almar
    almoror rosalir
    rosalor de graaler
    graalmar em floror
    florar de almir
    almor em florer
    flor em saurir
    sorrir seu alor
    soror seu amar
    amor em florer
    florar em a frol
    frolir de luys
    luyr de rosar
    rosal de luzis
    luzer de soror
    saurir do alor
    alar em a flor
    flore de florar
    fror a florer
    floror de lysor
    luysar em frorir
    frorer de luyr
    luar de donir
    donys de graalor
    graalir de fralar
    fralor de guilhar
    de frolys de donor
    donys de a flor
    frole de guilhar
    guilhor em florar
    flor de luyr
    luyzor em luzir
    luzor de floryr
    flor de seu lyr
    lyr de seu ler
    leer de seu lys
    lysfrol de lys ser
    frol guilhade donis
    guilhade donis de frol
    donis de frol guilhade

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  8. Agradeço as palavras da Maria Aurora; retribuo o beijinho ao Platero e as palavras amigas; abraço a sereia que não sei se percebeu que este texto era também uma resposta ao que conversámos em Dezembro; reconheço com simpatia as palavras de Macários e do Pássaro Noctívago a quem não sei responder. A Lapdrey só posso dizer que é bom escutá-lo, também quando, para além de conversador empolgado e poeta, é um cuidador-leitor. Obrigada por me fazer sentir que lê o texto e fica nele demorado. A demora é um estado que agradeço.
    Também aprecio a pergunta do anónimo. Mas como se responde a um mistério, se ele nos deixa mudos e surdos?...

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  9. «Elegia do Amor
    I
    Lembras-te, meu amor,
    Das tardes outonais,
    Em que íamos os dois,
    Sozinhos, passear,
    Para fora do povo
    Alegre e dos casais,
    Onde só Deus pudesse
    Ouvir-nos conversar?
    Tu levavas, na mão,
    Um lírio enamorado,
    E davas-me o teu braço;
    E eu triste, meditava
    Na vida, em Deus, em ti...
    E, além, o sol doirado
    Morria, conhecendo
    A noite que deixava.
    Harmonias astrais
    Beijavam teus ouvidos;
    Um crepúsculo terno
    E doce diluía,
    Na sombra, o teu perfil
    E os montes doloridos...
    Erravam, pelo Azul,
    Canções do fim do dia.
    Canções que, de tão longe,
    O vento vagabundo
    Trazia, na memória...
    Assim o que partiu
    Em frágil caravela,
    E andou por todo o mundo,
    Traz, no seu coração,
    A imagem do que viu.
    Olhavas para mim,
    Às vezes, distraída,
    Como quem olha o mar,
    À tarde, dos rochedos...
    E eu ficava a sonhar,
    Qual névoa adormecida,
    Quando o vento também
    Dorme nos arvoredos.
    Olhavas para mim...
    Meu corpo rude e bruto
    Vibrava, como a onda
    A alar-se em nevoeiro.
    Olhavas, descuidada
    E triste... Ainda hoje te escuto
    A música ideal
    Do teu olhar primeiro!
    Ouço bem a tua voz,
    Vejo melhor teu rosto
    No silêncio sem fim,
    Na escuridão completa!
    Ouço-te em minha dor,
    Ouço-te em meu desgosto
    E na minha esperança
    Eterna de poeta!
    O sol morria, ao longe;
    E a sombra da tristeza
    Velava, com amor,
    Nossas doridas frontes.
    Hora em que a flor medita
    E a pedra chora e reza,
    E desmaiam de mágoa
    As cristalinas fontes.
    Hora santa e perfeita,
    Em que íamos, sozinhos,
    Felizes, através
    Da aldeia muda e calma,
    Mãos dadas, a sonhar,
    Ao longo dos caminhos...

    Tudo, em volta de nós,
    Tinha um aspecto de alma.
    Tudo era sentimento,
    Amor e piedade.
    A folha que tombava
    Era alma que subia...
    E, sob os nossos pés,
    A terra era saudade,
    A pedra comoção
    E o pó melancolia.
    Falavas duma estrela
    E deste bosque em flor;
    Dos ceguinhos sem pão,
    Dos pobres sem um manto.
    Em cada tua palavra,
    Havia etérea dor;
    Por isso, a tua voz
    Me impressionava tanto!
    E punha-me a cismar
    Que eras tão boa e pura,
    Que, muito em breve – sim! -,
    Te chamaria o céu!
    E soluçava, ao ver-te
    Alguma sombra escura,
    Na fronte, que o luar
    Cobria, como um véu.
    A tua palidez
    Que medo me causava!
    Teu corpo fino
    E leve (oh meu desgosto!)
    Que eu tremia, ao sentir
    O vento que passava!
    Caía-me, na alma,
    A neve do teu rosto.
    Como eu ficava mudo
    E triste, sobre a terra!
    E uma vez, quando a noite
    Amortalhava a aldeia,
    Tu gritaste, de susto,
    Olhando para a serra:
    - Que incêndio! – E eu, a rir,
    Disse-te: - É a lua cheia!...
    E sorriste também
    Do teu engano. A lua
    Ergueu a branca fronte,
    Acima dos pinhais,
    Tão ébria de esplendor,
    Tão casta e irmã da tua,
    Que eu beijei, sem querer,
    Seus raios virginais.
    E a lua, para nós,
    Os braços estendeu.
    Uniu-nos num abraço,
    Espiritual, profundo;
    E levou-nos assim,
    Com ela, até ao céu...»
    Teixeira de Pascoaes

    O Poema sobre as tardes outonais do passado e das primaveris do futuro.

    Um beijinho...

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  10. Querida Anita,

    ai este poema! Este poema que é a síntese de tudo e até do grito e do abraço! Obrigada por teres reconhecido tamanha história em mim e ao que escrevi o dedicares! Cubro as faces com as mãos e digo baixinho estes versos. São liiiindos (!) e devolvem-me tudo o que pertence à minha alma.

    Boa semana para ti!

    Um sorriso atrás das mãos está guardado para ti.

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  11. Lembrei-me de ti, Isabel, ao lê-lo...

    "conheço" há tão pouco tempo Pascoaes e, no entanto, parece que sempre nestes poemas vivi, vivemos... :)

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  12. Venho até ti, Isabel, e sempre que chego perto da tua escrita o meu coração viaja não só com o texto, mas com a rarefacção do ar que ali está, o silêncio e a luz que permeiam as ideias de uma luz alta, acompanhada de um cuidado extremo e de uma entrega à clareza do verbo que dói, até doi! É por isso, Isabel, que aquilo que pensas e escreves e és é um tesouro muito precioso, mormente a quem tem o imenso prazer de ser teu (tua) amiga.

    Um beijo maior que o mundo...de Saudades.

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  13. 'eu que sempre caminhei na direcção do vento'

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  14. Um imenso sorriso Saudades e Baal. Vou com o vento. Rarefeita.

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  15. rarefeita, feliz com o vento, Isabel?

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  16. Baal,

    nada existe em mim que não consiga rarefazer, mesmo o mais denso, mesmo o mais duradouro dos sentimentos e, no entanto, nem sempre consigo sentir que seja feliz. Mas há sempre vento a percorrer-me interiormente. E sou sensível à direcção do vento. Gosto de o ouvir e de o ver desenhar. Desde miúda. Mas tenho razões para ser feliz, não sei sempre reconhecê-las, não fiz essa aprendizagem. Tenho que escutar mais o vento.
    Um sorriso pela pergunta, talvez ele lhe respondesse melhor do que as minhas palavras. Sou tão imperfeita com elas. O sorriso tem mais o silêncio que as pode revestir da pureza do pensamento que as pensa e do sentir que as sente.
    Gosto de perguntas difíceis...obrigada.
    Desculpe se a resposta foi confusa.

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  17. obrigado Isabel, o seu sorriso respondeu-me, sentidamente.

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