terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Morrer de luz

“Gostaria de perder a razão com uma única condição: ter a certeza de me tornar um louco alegre e jovial, sem problemas nem obsessões, folgazão de manhã à noite. Se bem que deseje ardentemente êxtases luminosos, não os quereria no entanto, pois são sempre seguidos de depressões. Quereria, em contrapartida, que um banho de luz de mim brotasse para transfigurar o universo – um banho que, longe da tensão do êxtase, conservaria a calma de uma eternidade luminosa. Teria a ligeireza da graça e o calor de um sorriso. Quereria que o mundo inteiro flutuasse neste sonho de claridade, neste encanto de transparência e imaterialidade. Que não haja mais obstáculo nem matéria, forma ou confins. E que, neste paraíso, eu morra de luz”

- Emil Cioran, Sur les Cimes du Désespoir, in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.31.

12 comentários:

  1. Belo o pensamento de Cioran. De acordo com o conhecimento que possuímos hoje, um dia, morreremos de facto todos de luz. Metafisicamente, regressaremos ao Uno, e fisicamente, o Universo regressará ao ponto original.

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  2. Paulo,

    Morrer de luz, é na realidade uma aspiração feliz. Cioran tem cada coisa!:)

    Madalena,

    ...Mas esse dia vai longe... Queremos que a luz nos invada, agora. Queremos olhar e ver e ver... Contudo... parece que não!
    Estranho!...

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  3. Creio, caro Paulo, que se roça aqui um pouco aquilo de que ontem houve questão, relativamente a outro post: aquela indefinível, ou dificilmente definível película que "situa" o "cá" e o "lá" que, por exemplo a palavra "paramita" exprime, esse "além" da "outra margem", que na verdade me parece ser um "além" de ambas as margens, de "cá" e de "lá"

    O problema no belo texto de Cioran parece-me, nesse aspecto, ser o tempo do verbo em que se con-juga o que se intelige, se escreve e inscreve: o pretérito imperfeito. O nome do tempo do verbo fala por si.

    Sendo pretérito - do lat. "praeteritus": "deixado de lado, omitido; passado, decorrido" - é algo que se fala "como se" não acreditássemos (ou não acreditemos) que algum dia tenha possibilidade de vir a ser, e ser presente.

    "Imperfeito", por seu lado, fala da imperfeição mesma, intrínseca de tal enunciar do desejo de um improvável.

    Certas correntes linguísticas, ou até "para-linguísticas" como a PNL (Programação Neurolinguística), vêem a linguagem como um modo de programação, apreensão, construção e sujeição relativamente ao que se tem como real.

    Assim, por ex., o vocábulo "não". De acordo com alguns estudos realizados, aparentemente o cérebro não "reconhece" conteúdo a tal acção de "negar".

    Logo, o que fica de um qualquer "não" é aquilo que ele pretenda negar: o que fica é o exacto contrário de si.

    Por isso é dado o exemplo clássico da criança a quem a mãe diz, insistentemente: "Não entornes o leite". O que realmente acontece é que, não reconhecendo o cérebro da criança esse "não", ele subconscientemente trata de processar o que ele assume como uma "ordem" (visto que a criança não tem os filtros de defesa,os "firewall", que os adultos criam, defensivamente) e então, em conformidade com esse "entendimento" do cérebro, o que acaba por acontecer normalmente é o leite ser realmente entornado. O contrário, precisamente, do que se pretendia.

    Assim também, aqui no texto de Cioran, de inegáveis conteúdo profundo e grande beleza, a conjugação pretérita imperfeita remete desde logo para um improvável que roça o "provavelmente nunca" do vir a realizar-se.

    Isto, a assim ser, cria enormes perplexidades, visto que a todo instante utilizamos a negação para afirmar algo.

    Na própria frase que eu escrevi há pouco ("De acordo com alguns estudos realizados, o cérebro realmente não "reconhece" conteúdo a tal acção de 'negar'"), estarei a dar um tiro no pé, de acordo com tais pressupostos.

    Se digo que "o cérebro 'não' reconhece o 'não'", isso vai ser interpretado por ele, subconscientemente, como um comando que diz assim: "estou a reconhecer a palavra 'não', mas como o 'não' é isento de conteúdo para mim, 'não' é reconhecido por mim, estou a reconhecer o que 'não' reconheço: que é isso? Estou confuso. Que quer que eu faça?".

    Então, no frase em causa, isso iria a mais um outro degrau de entendimento, dizendo o cérebro "a si mesmo":
    "'Não'reconheço o 'não', mas como estou a reconhecer o que irreconheço, sinto-me confuso e indistingo o que querem que faça".

    Só assim, não utilizando a palavra 'não' (novo vício e paradoxo!) podemos sair do círculo vicioso; caso contrário, a lógica enreda-nos no paradoxo infindável e insoluto.

    É, de alguma forma o que faz Cioran.
    Quando ele diz: "Gostaria de perder a razão com uma única condição", isso é de algum modo uma contradição nos termos.
    Não existe um "perder de razão" com limites da perda, o que existe é a perda de sustentação da linguagem no reconhecimento do real enquanto tal na linguagem.

    Seja por que motivo for, a razão (a radicação do entendimento no entender as coisas), sendo perdida, faz que se perca o próprio uso adequado da razão, visto que ela é não um órgão, mas certo modus de utilização dum determinado órgão.

    A forma de expor de Cioran é, assim, pouco mais ou menos a seguinte: eu gostaria disto, mas para tê-lo gostaria de tê-lo deste modo.
    Parece-me que não funciona, visto que se limita a priori a própria plenitude da experiência que se deseja.

    Daí certas expressões (que "assassinam" o que exprime como desejável) tais como "com uma condição", "se bem que... não quereria", "quereria, em contrapartida, que...".

    A partir de "Teria a ligeireza da graça e o calor de um sorriso"(frase belíssima , aliás) temos um segundo membro do argumento do parágrafo, mas não é dito ou indicado como se lá chegue.

    Há uma solução de continuidade de sentido, visto passar-se de verbos
    que exprimem desejo, conjugados no pretérito imperfeito, para verbos que exprimem posse, conjugados no condicional (condicionados, portanto), sem mostrar como se passa duma situação para a outra.

    E finalmente,impõe-se um presente do conjuntivo que remete para um certa nuance de convite a um imperativo.

    Eu reputo de muito importante este tipo de análise, de auto-análise à linguagem, visto que tende a mostrar(-nos) como o processo de construção e utilização da linguagem define onde confina o que cada um é, enquanto ser pensante, sensiente e agente, que nisso se condiciona e programa.

    Importará, porventura, é que o façamos cada vez mais conscientemente.

    Obrigado, Paulo, por este texto.

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  4. Madalena,
    Ainda que "morramos" de luz (há já teorias que defendem que somos porventura feitos de algo semelhante a "luz"), fica-me a perplexidade quanto ao mais "fundo", extreme e trans-extreme de assim ser - ainda que eu possa aceitar a doutrina hindu de "lila" (jogo) e a "textura" feita de ilusão ("maya") que a tudo subjaz, do budismo.

    Para mim, regressar a um Uno, qualquer que ele seja, será uma "perda", será não plenitude, visto que indiferencia na indiferença do Uno a singularidade da pessoa, que pode ser plena "ad aeternum", sendo "singular", e ser a plenitude do todo na parte, como no exemplo do holograma: com a ressalva de que isso só me faz sentido se o "padrão" de sentido "absoluto" desta vida (e, porventura, de outras) for o "molde" , a "feição", o "modus" por que esse eternidade se "fará", haverá eternamente em mim e para mim.

    Caso contrário, ainda o sentido que isto possa fazer não faz qualquer sentido.

    (Espero não estar a cair no mesmo erro de Cioran, impondo condições a como quero que "isso" seja.
    Mas... e, por outro lado, ... e se nos fosse lícito e possível e quiçá desejável impor tais condições?)


    Saudades,

    Eu entendo aqui "morrer de luz" mais no sentido de nascer para ela e nela.
    Re-conhecê-la, e re-conhecer nela o que somos.
    É assim que o entendem?

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  5. Caro Lapdrey, admiro imenso a sua energia e capacidade de se virar e revirar nas reviravoltas das palavras para deslindar os seus limites e a sua limiar sugestão do ilimitado, mas francamente neste texto de Cioran prefiro olhar para o que ele aponta e não para o modo imperfeito como o faz, sinal das nossas humanas ou inumanas contradições e dos limites de andarmos com as muletas das palavras, quando por Ventura delas não carecemos para nada de realmente importante.

    Nos melhores momentos da sua visão e da sua obra dá-se já este morrer de luz ou de treva e a transcensão dessa questão cansativa e mental da relação do uno e do múltiplo, inventada por essa forma de auto-tortura chamada metafísica (enquanto discurso que brota do êxtase/ênstase que se esquece).

    Pessoal e impessoalmente, nada me interessa que não seja Já e pouco me importa o que lhe chame.

    Desculpe algo no tom. Ando um pouco desabrido e farto de muita coisa, a começar por mim.

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  6. Como eu o entendo, meu caro Paulo, eu que andei anos na "outra margem" daquilo que vislumbrava como o que pudesse chamar de eu mesmo, ou que porventura andei com o coração numa margem, a cabeça noutra e os pés noutra ainda...

    Da angustiante sensação de negatividade vazia sem sentido de tudo, ao sentido "teatral", artificial, artificioso do viver a vida como máscara de mim mesmo no teatro do ninguém que em mim encontrava, até à nihilista denegação quase suicidária e desafiante do mais Alto Sentido (no limite, sentido sem sentido) do sentido de quanto tinha mais sentido para mim - foi, como bem sabe, quando eu renunciei (e sabe ao que eu renunciei) a procurar sentido, para apenas "limitar-me" a aceitá-lo qual e quando e se ele viesse, foi "aí" que o descentrar até mesmo da ausência disso me "ancorou" numa certa "leveza" omnipresente das coisas, omni-sentida e omni-apreendida do que não está jamais realmente presente: e, no entanto ... "está ali"...

    Foi quando se me rasgou essa espécie de "véu" (que todavia, de algum modo, sempre permanece como intrínseca ao só assim podermos existir), véu do estar como modo de ser, ou do ser como essência do estar, e se me abriu então esse "há", foi então que tudo para mim se clarificou nessa vasta clareira de serenidade pacificada do que "Há" em e no "Aberto"...

    Cada um - creio não errar ao presumi-lo - tem o seu modus único de fazer desabrochar a rosa do seu deserto.
    Seja como for, isso não tem principio nem fim, nem sequer se importa que os haja.

    Abraço naquilo que sabe...

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  7. Para que se não interprete mal as minhas palavras, ou melhor o que com elas eu pretendi dizer, obviamente que isto que eu acima disse, no comentário anterior, remete-me muito humilde e alegremente para a pré-primária da Via sem caminho... lá onde porventura sempre estamos...

    ...pois, quem sabe, seja ele que nos perpasse, e não o contrário...

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  8. saudadesdofuturo, luz é mãe, desde a luz do início do universo, até à luz que pressentíamos/víamos já dentro do ventre. Estranho, de facto, que à medida que crescemos, deixemos de a ver e sentir como algo de precioso.

    Paulo e Lapdrey, não acredito que no Uno algo se perca. Mas não quero aborrecer o Paulo. Podemos falar do Já e Agora. Agora existimos separados. Unidos, de forma invisível, mas separados. A individualidade é bela. Existe fricção. Existe contradição. Existe diálogo. Existe também o aborrecimento e a solidão. E raiva e ganância e o exercício de poder de uns sobre os outros.

    Existe também a depressão causada pelas dúvidas, pelas procuras incessantes, pelo horror que também existe na vida, que se devora a si própria sem cessar.

    Existe ainda o não viver, quando se nasce com fome e se morre com fome e sede, com menos de um ano de idade. Ou ainda o não viver dos que engordam tanto, que têm de atar o estômago, para sobreviver. Existe tudo, distribuído de forma desigual por cada criatura. Desarmoniosamente. E a mais desarmoniosa de todas as criaturas é o humano. O que mais se separa, o que mais se individualiza, o que mais aprende. O que cada um de nós tem, aquilo com que nasceu. o que atrai a si, faz o Agora. Se comemos e bebemos o suficiente todos os dias, sobra-nos energia para mudarmos o Agora. Há quem não tenha essa sorte. Acabei de mudar o meu Agora. Mas não comecei Agora. Comecei há uns tempos atrás, não ontem, há mêses. Soube esperar.
    Até acredito que se o Paulo não quiser regressar ao Uno, não regressará. É essa a importância que acredito terem os indivíduos. O comentário do Paulo fez-me imaginar partículas rebeldes, que evoluem e permanecem para sempre a viajar de um lado para o outro.

    Talvez um dia o Lapdrey e o Paulo sejam essas partículas. Entre outras. Quem sabe se não serão sempre elas a despoletarem a criação de novos universos...

    Peço desculpa, mas lá estou eu outra vez a criar uma história... Mas agora não consigo deixar de imaginar os dois a contestarem o Uno e a serem responsáveis por um novo universo. Como seria ele, esse universo? Menos cruel?

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  9. Cara Madalena: Mãe é mãe e luz é luz. Essa é a luz. E é também a minha. A luz do o início do Universo é o mesmo, em termos valorativos, que a suposta treva, antes do início do Universo... Talvez em metáfora ou em linguagem poética, ou simbólica, as tornemos a mesma. Não precisava que a Madalena me informasse disso.
    Não concordo nada que se comece a deixar de ver a “luz” com o avançar dos anos. Admito até que, para muitos,seja precisamente o contrário... como deve saber. Nada mais acrescento, por agora.

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  10. Madalena,
    relativamente a certos aspectos do que aqui se tem "debatido", aconselhar-lhe-ia a que lesse os comentários ao post de Paulo Borges, com um excerto do "Peregrino Querubínico", de Angelus Silesius.

    Acredito que algo, por ali, possa esclarecer-lhe um ou outro ponto que porventura não tenha entendido bem, daquilo que por aqui tem sido dito.

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  11. Cara Madalena, não creio que não queira regressar ao Uno... A minha questão é que duvido que, em termos absolutos, haja Uno e quem a ele regresse. E a própria noção de Uno é pouco "una", pois implica já o estar fora, pensando-o e dizendo-o. O Uno é filho da cisão que não há.

    Não faço mais do que repetir o que os grandes pensadores do Uno disseram, a começar por Plotino.

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  12. Nunca me preocupei muito com os grandes... prefiro os pequenos.

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