sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Apontamento

Os jardins parecem abandonados. A infância também. No palácio, as estátuas reflectem, como espelhos, algo que não deixam partir. Prendem a palavra ao silêncio, o invisível ao visível. As salas estão arrefecidas e nada é real. O belo não existe, como bem sabia Kant. Inexiste. As salas e os jardins do palácio são belos. Mas quando ela se pergunta se o arrefecimento vem do clima, logo percebe que vem do que parece que finda.
A Ideia é ainda, para o humano, o que vem do que está fora do tempo, mas o visita. A Ideia não vem até ela, é ela que vai ao palácio, e o palácio, pensa, é uma obra que a invade de melancolia. A Ideia, no palácio, petrifica-a. Para ela, o palácio continua, como na infância, um lugar velho, um antiquíssimo lugar de reconhecimento. Continua velho, como na infância, continua com ela um continuum de mútuo envelhecimento. Agora ela sabe que a obra de arte não pode ser conhecida porque é um ethos de recolhimento e acolhimento. Na obra de arte, a Ideia é uma visão de reconhecimento e, na ruína da obra, a Ideia resgata-a para a Origem. É por isso que as ruínas brilham mesmo quando arrefecidas. A Ideia paira sobre elas como uma poeira de luz, como um vulto ou manto oculto vagando por entre as portas, no entreaberto, na altura dos tectos, nas sombras ou nas cores consumidas, nas colunas, nas volutas carcomidas. Sente-a em permanente vertigem pelo tempo. Pensa na Capela Sistina e experimenta a mesma sensação, Deus recua nos interiores da pintura de Miguel Ângelo, como recua em silêncio no Antigo Testamento, na obra de arte a Ideia recua. A Ideia de Beleza recua até à ruína…
É esse recuo que gera, no contemplativo, a obediência. É preciso ficar onde uma Ideia não parte mesmo quando se afasta. Assim é com ela, ela prefere obedecer à beleza que a transcende do que à lógica que domina. Assim, presa à Beleza, sente, o belo é belo. Fala para B. mas não consegue partilhar esse sentimento invasivo do Belo. Pensa ainda, antes do coro entrar, que sabe ela do sono? Sabe que o sono é sono. E se lhe sorri, a B., é porque passa à sua frente, como um vulto ou um manto que se quer oculto para sempre, a Ideia. Dela recebe uma bênção. E essa sabe-a, ou melhor consegue dizê-la, a bênção que vem da Beleza é a tristeza. Percebe, antes da música, por que razão consegue o melancólico a visão da Beleza. Há nele e nela um júbilo que talvez venha, Paulo e Lapdrey, da divina mania, talvez o divino ou a Ideia só se ofereça como um dom, porque, lembra-se de ter ouvido ou lido, não sabe a quem nem quando, Deus dá aos que estão em sono profundo e não tanto aos que estão em vigilância permanente. A Beleza abre ao que está vivo e com sono uma morada no sonho, promete um movimento interior ao olhar para o lugar onde dança a imagem pairante, como a pureza promete ao arrependido um lugar à direita do Pai. O melancólico adormece e envelhece, por isso, escutando e vendo a dança segundo a música do tempo. Acompanha com o olhar os coros que cantam, os coros que a dançam. O melancólico é como Janus, o dos dois rostos, é com o olhar elanguescido e adormecido pela música do tempo, o que está voltado para os que vivendo, na roda da vida, conhecem o prazer, a riqueza, a pobreza e a vitória e é, com o olhar rejuvenescido, o que olha para trás, para a Origem. Os homens melancólicos são como as estátuas, reflectem como os espelhos algo que não deixam partir, prendem a palavra ao silêncio, o invisível ao visível. Os homens melancólicos não perdem dentro de si a infância. Ela é, dentro deles, o Diónisos que o tempo sacrifica, mas o seu outro rosto voltado para trás, glorifica.



Escutando musicalmente Diónisos, o coro, os melancólicos esperam a apresentação da Ideia. Apolo visita-os nessa escuta adormecida. Só a escuta prepara a visão, como só o discurso não escrito treina a memória – como sabia Platão – para o reconhecimento da Ideia. E assim, sonham, que os humanos se reconhecerão filhos dos deuses: escutando a música dos coros que, transformando a dor em alegria, nos mostram a vida como festa da agonia. Os melancólicos esperam o trágico. Porque na música, a Ideia, ressurgindo num movimento do corcel dominado pela Ordem e pelo Ritmo – por Apolo – recua para dentro do homem. No corpo arrefecido, no corpo adormecido e no corpo ferido de mortalidade, a dança segundo a música do tempo, prende com a atenção o que da Ideia perpassa e de nós se afasta. O homem sonha esse outro que dentro de si, velho, é para sempre criança, a recriança. É na ruína que a Origem se anuncia e recria. É na infância que a voz é una com o todo.

Este breve apontamento sobre melancolia, Beleza e música nasceu por causa do poema de Platero que musicalmente escutei no palácio, o lugar onde a minha alma em criança se deu conta da sua melancolia e no domingo, recriando os movimentos do tempo, foi recriança. Grande e grande é a Beleza do poema e da oliveira. Puro o óleo que nos unge de inocência e lembrança.

16 comentários:

  1. Entro neste texto musical e canto e danço com ele e com a música...

    ResponderEliminar
  2. Isabel

    é imperdoável que tenhas estado em Queluz sem dares uma palavra. Cheguei à 5 em ponto de la tarde porque andei perdido a passear na Ponte. Tentei explicar.
    Mas cheguei a tempo, felizmente, de ouvir o insignificante/minúsculo poema pela garganta daquele grupo de gente generosa.
    Grato agora pelo teu texto, de maneira particular se o poema/canção foi capaz de ser rastilho de uma única frase dele
    Muito obrigado, Isabel

    asaias@sapo.pt

    ResponderEliminar
  3. Platero

    Eramos nós: eu e a Isabel! Falámos consigo no final do concerto, não se lembra? Perguntou-me se eu "era a pianista" ... a Isabel sorriu-lhe e disse: "ainda não"!
    Ai Platero, que é mesmo a recriança que a Isabel vislumbrou.
    O que ela vai rir com isto...

    ResponderEliminar
  4. Isabel,

    O deslumbramento começa na imagem e abre o texto de sentido. A descrição atenta e iluminada da leitora percorre os vários lugares dentro dele e na ideia. O contínuum liga por fios invisíveis o que a realidade dá a ver. E o que a realidade dá a ver traça o camiho inverso, até à ideia de um capela que pode ser a "capela". O coro envolve-me também. Sei o seu gosto de cor.
    Também tenho a infância em Queluz. Vivem lá os meus tios e primas. Revisitei cosigo o palácio, ouvi com os seus ouvidos o calor da música e também consigo ver Platero feliz. Por tudo isso, agradeço o apontamento que me foi momento, não vivido, mas "re.vivido".

    Uma nota em si.
    Abraço forte, Saudade.

    ResponderEliminar
  5. Platero,

    Sei que estás contente e tudo correu bem. Ouvir fora de nós, o que nasceu de nós, mas se transforma no que é reinventado é, concerteza, uma boa sensação...
    E depois estiveste em tão boa companhia, mesmo sem saberes...em tão boa companhia...

    Vou enviar-te um mail. Vais gostar.

    Um abraço, Maria

    ResponderEliminar
  6. Que ensaio extraordinariamente belo... se sinto dificuldade em destacar algo, houve no entanto um pedaço que me tocou profundamente: "Na obra de arte, a Ideia é uma visão de reconhecimento e, na ruína da obra, a Ideia resgata-a para a Origem. É por isso que as ruínas brilham mesmo quando arrefecidas." Este seu ensaio, Isabel, fala da eternidade do Humano, das memórias perdidas que se reencontram nas Artes. Uma memória tão profunda que lhe chamaria a não-memória...
    Um abraço de parabéns.

    ResponderEliminar
  7. Por olhar e ver assim Ela própria é uma obra de arte...

    Belíssimo canto de dentro!

    A Rapariga que Roubava Livros

    ResponderEliminar
  8. É aceno sempre de não incerto reconhecer do que bem sabemos, Isabel, tanto quanto de seu mais incluso re-conhecimento, quando as palavras - belas quais as amamos e elas benignas nos bordejem a face expectante, e se nos segredam ao vento suave da fala que as traz poisadas em folhas de repouso ocre e cor vermelha de Maio – quando as palavras, Isabel, nos não suscitam eco ou replicação alguma e, do alhur de luz de onde em seu vir provenham, nenhuma refracção se espelhe, mas sim, diáfano para sempre, o silenciar mais e mais encantante de seu ventre tão-só se faça silêncio.

    É hora, então - hora que nenhum relógio conhece - de repousar a face febril no espelho inverso das águas imparáveis de onde nos vem, intocável, a carícia do anjo de asas de pérola e sorriso cristalino como a frescura intacta da sempre inacessível fonte do palácio antiquíssimo do rei jamais esquecido, no inesperar de quanto virá do que já veio.

    Então, também no rosto de Kant surge beleza que esta nele já sempre vira, e olhar e boca em Platão se suspendem de súbito à flor do dizer, assomando aos ombros silentes dos plátanos que para sempre passeiam o êxtase do cair de sua perene folhagem, nos passos do jardim futuro de todas as saudades, a meio sempre do eterno percorrer do encaminhar a Santiago.

    Um abraço num beijo.

    ResponderEliminar
  9. A Isabel é uma possessa da Beleza que por si invade o mundo. A divina mania ainda nos visita, não só de miséria são os tempos e a melancolia rasga asas.

    Platero, o que provocaste!

    ResponderEliminar
  10. Desculpem os outros por começar por Platero, mas a situação merece aqui um breve esclarecimento. Seria imperdoável, com efeito, se eu não tivesse falado consigo no fim da actuação do coro. Mas falei. O Platero até nos voltou a contar, a mim e à Brunhild, o episódio da ponte. Eu não tenho a pretensão de saber explicar tudo o que se passa no universo, mas penso que a comoção que povoa os que são do tamanho da sua inocência, o levou a não ouvir o nosso nome. Eu sou (esta afirmação soa-me sempre estranha e não totalmente verdadeira) a que estava a falar com o fotógrafo, precisamente a pedir-lhe as fotografias. Rimos consigo do episódio da ponte...foi então que falámos daquele coro, o Platero disse que já o tinha visto a actuar em Sintra, perguntou se a Brunhild não era a pianista, eu disse "ainda não" e sorri; eu contei que estudei perto do palácio e que tinha professores que cantavam naquele coro...não sei se isto por si só chega para proceder à recordação do encontro...

    Mas que fique claro que teria sido imperdoável se não tivesse falado consigo, mas quero que saiba que da minha parte é facilmente perdoável, nem sequer chega a pôr-se a questão de haver o que perdoar, ter-se esquecido de mim e o mesmo para a Brunhild. Eu já disse ao Paulo tantas vezes...bem me parece que não sou verosímil...Paulo, afinal, já consigo ser como as páginas da Serpente, às vezes inexistimos! Muitos sorrisos.

    Eu é que agradeço o poema, o coro. Sim, foi o poema e a música que desencadeou o "apontamento".

    Bem, com o Coro canto e danço, agradecendo a companhia que me faz pela vida.

    Saudades, claro que ainda brincamos nos mesmos jardins e nos encontramos entre as estações e nas mesmas paragens, somos do mesmo chão e batemos asas nas mesmas esferas celestes.


    Madalena, aceitando que a sua generosidade não reparou nas imperfeições ou as desvalorizou, aceite o meu obrigada cheio ainda das flores com que a acolhi. Quanto ao belo há muito para pensar, nas ruínas muito do espírito tem que saber e aprender como habitá-las; o espírito tem que aprender a habitar as ruínas para as salvar do esquecimento, e isso é um imperativo! Tentei completar isso com o que acima lhe deixei.

    Rapariga que Roubava Livros, cubro o rosto com as mãos de vergonha com o que disse. Não,não sou uma obra de arte, pudera eu ser apenas uma contempladora digna das obras e já assim me deixaria bem morrer. Percebendo o mimo que me deixou agradeço. Rectifico, Ela agradece.

    Lapdrey, bom cuidador-leitor, não sei dizer-lhe nada, coberta de vergonha que já vinha do comentário anterior, só consigo acenar-lhe com a mão cheia dessas palavras que às vezes as asas de um anjo bate no movimento da escrita, quando escrevo.
    Aguarde resposta à pergunta que me fez, bem sei que era uma pergunta para pensar mais do que para responder - mas ateou em mim uma "invontade" que é o pensar com - quando conversámos sobre a educação.

    Paulo, pois a Beleza que recebo torna-me ainda mais inverosímil....um sorriso muito amigo.

    A vossa,
    Isabel

    ResponderEliminar
  11. o Belo só existe porque existem pessoas que o conseguem encontrar... assim como a Bela o encontrou no Monstro! :)

    ResponderEliminar
  12. Maravilhado com este apontamento, Isabel! Visitei o palácio, tal como a Isabel, em criança e adolescente e muitas são as memórias.
    Caro Platero, estava por perto e assisti àquele momento musical 'dás oliveira'; também cheguei atrasado mas a tempo de quando o maestro o chamou para junto do coro, o ouvir contar publicamente a história da ponte. As sorridentes meninas que no final falaram com o António eram então a Isabel e a Brunhild, quem diria?!
    Sem ofensa, Isabel Santiago, mas cheguei a pensar que fosse mais velha! Porém, das duas, continuo sem saber, quem é quem? Não reparei no fotógrafo, porque será?

    ResponderEliminar
  13. Caro Anónimo

    desvendar quem é quem é coisa que lhe cabe descobrir. Risos. Pois, não será o primeiro a ler-me e depois perante mim achar que tinha que ser mais velha! Como sabe que sou a mais nova, se não sabe quem é quem?

    Pronto, pronto, sou só velhíssima de espírito e ando no corpo errado...risos.

    Ainda bem que gostou do apontamento. Confirma-se uma intuição antiga: já estivémos todos juntos.

    Muitos sorrisos para um tão nobre visitante palaciano.

    ResponderEliminar
  14. A morena é a Isabel Santiago! E a outra morena é a Brunhild! Grandes e castanhos são os olhos da Isabel e de indefinida cor escura são os olhos da Brunhild! A menina de salto alto é a Brunhild e a de "pés azuis" é a Isabel! A sorridente é a Brunhild e a que fala sorrindo é a Isabel! Quem é quem? Estarei longe da verdade?

    ResponderEliminar
  15. Sim, Isabel, também é pelo que leio de si que achava ser mais velha. Não "a mais velha". Está claramente, a dizer-me que das duas era a mais nova. Não reparei... e com a descrição do Palpite fico na mesma! Não vi os "pés azuis", nem os sapatos altos que se calhar também tinham "pés azuis". Nem pela cor dos olhos chego lá... vi que eram as duas belas e sorridentes... e agora?

    ResponderEliminar
  16. Palpite:


    ponho o dedinho na ponta do nariz, aponto o olhar para o indefinido e faço: Huuummmmm...!Sorrio, depois.

    Anónimo:

    agora só vejo outra alternativa, esperarmos que haja novo concerto neste ou noutros palácios para podermos trocar sorrisos, muitos sorrisos e agradecermos pessoalmente as simpatia e excesso das suas palavras. Então, talvez uma boa inspiração, me permita escrever um texto. Chamar-se-á, "Os Sorrisos Trocados", já que em homenagem ao Palpite devemos brincar com a hipótese de Mann, "As cabeças Trocadas".

    Fiquem bem e com sorrisos da Isabel.

    ResponderEliminar