quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

"É Natal, ninguém leva a mal!" - II

As Festas dos Loucos, “festum stultorum”, “fatuorum” ou “follorum”, do Burro e dos Inocentes, celebradas, consoante os locais, em diversos dias do referido período, quase se identificam e confundem . Promovidas pelo baixo clero, em particular pelos subdiáconos, são testemunhadas desde o final do século XII até ao do século XVI, com raros prolongamentos pelo século seguinte, quando as constantes condenações e proibições dos vários concílios episcopais, aliadas à intervenção de um poder real centralizado, que agora se leva mais a sério e dispensou já o espelho de verdade que era o bobo da corte, as restringem ou fazem desaparecer, pelo menos das igrejas, dando porventura origem às confrarias seculares, as “companhias dos loucos”, que, procedentes agora da burguesia, as continuarão sob a forma de festejos carnavalescos laicos. Nelas se elegia, entre os subdiáconos, e a exemplo das Saturnais e dos vários reis carnavalescos, um “dominus festi”, um burlesco soberano da festa, vulgarmente designado como “Bispo” e, por vezes, “Papa dos Loucos”, o qual assumia toda a autoridade durante o período dos festejos. Momento marcante é, em plena eucaristia, a transmissão simbólica do “baculus”, do dignitário do ano anterior para o novo, quando significativamente se entoam os versos do Magnificat, “Deposuit potentes de sede: et exaltavit humiles”, que referem a escatológica inversão, por Cristo, da ordem do mundo, exaltando os humildes, destituindo os poderosos. Este rito é o centro de um conjunto de sistemáticas e metódicas, mas também espontâneas, transgressões, paródias, blasfémias e sacrilégios. Como escreve, em 1445, o deão da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, numa carta condenatória dirigida aos bispos e cabidos de França: “Padres e clérigos podem ver-se usando máscaras e aparências monstruosas nas horas do ofício. Dançam no coro vestidos de mulheres, lacaios ou menestréis. Cantam canções licenciosas. Comem chouriços pretos no altar enquanto o oficiante diz a missa. Jogam aí aos dados. Incensam com um fumo fétido procedente da sola de sapatos velhos. Correm e pulam pela igreja, sem corar da sua vergonha. Viajam finalmente pela cidade e seus teatros em miseráveis carruagens e carroças; e suscitam o riso dos seus companheiros e circunstantes através de representações infames, com trejeitos indecentes e versos torpes e libertinos”. Ainda em 1645, numa igreja franciscana, o Dia dos Inocentes foi comemorado, segundo relata em carta a Gassendi um seu discípulo livre-pensador, com a entrega da celebração aos irmãos leigos, pedintes, cozinheiros e jardineiros, com as vestes do avesso, os livros voltados para baixo, cascas de laranja como óculos, soprando as cinzas dos incensórios sobre os rostos e cabeças uns dos outros e cantando a liturgia num palavreado incompreensível. No que respeita à Festa do Burro, por vezes indistinta da dos Loucos, note-se que a sua figura central é um animal de simbolismo ambíguo, entre a “ignorância” e a “obscuridade” satânica e a “humildade”, a “pobreza”, a “paciência” e a “paz” cristãs, também clarividente, como no episódio de Balaão (Números, 22, 22-35), e de qualquer modo profundamente ligado à vida de Cristo. A singularidade é aqui a introdução de um burro no altar, durante uma missa solene em que momentos fulcrais como o Kyrie, o Gloria e o Credo terminam com zurros. No final o oficiante zurra três vezes e os assistentes respondem de igual modo, numa desfiguração cacofónica e burlesca de toda a seriedade e compostura litúrgica, conforme se pode constatar na reconstituição musical contemporaneamente feita pelo Clemencic Consort. Conforme o relato de John Huss, numa Festa dos Loucos na qual participou, para seu remorso, quando menino, o clérigo eleito “Bispo” era colocado sobre um burro, o rosto voltado para a cauda, sendo assim levado à missa, na qual presidia à folia geral.

- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.151-154 (as notas de rodapé foram suprimidas).

3 comentários:

  1. O crepúsculo, o crepúsculo, o crepúsculo! Sempre mais longe e perto. Enlouqueço a dançar no Horizonte, na Terra do Fim, na Bruma! Despojo-me do corpo morto da história e parto sem rasto no espaço que não há.

    ResponderEliminar
  2. É preciso ser-se sumamente, não direi puro, mas depauperado de si em abísmico extremo, para que não constitua "profanação" alguma aquilo que (sendo feito como tal para quem como tal o veja) será apenas o assumir realmente da - no limite - não-diferença entre "sagrado" e "profano".
    Tudo é sagrado, nada o é, tudo é profanado, nada é profanável...!

    A lição da Serpente:
    " É preciso, quando se é Serpente, passar em Satan para chegar a Deus", porque "temos de viver intimamente aquilo que repudiamos"("O Caminho da Serpente")

    ResponderEliminar
  3. Que haja Natal, para além do bem e do mal!

    ResponderEliminar