quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A Casa

Imagem retirada de Astronomy "...The Christmas Tree"
Sem temores, mas com o coração de pomba a bater apressado, levado por ágeis corcéis e indireccionados voos, Nu era por todo o lado e em nenhuma parte. Dormia como a planta em deserto, sem cuidados e sem que disso fora consciente, ou houvesse ainda sinal de haver algo fora de Nu. É preciso dizer que então a treva era ausência sem ausente, o tempo era sem necessidade e os rios dormiam no vazio pleno de nem rios serem. Para visitar esse reino de absoluta unidade, plenitude e verdade, era mister segredar algumas palavras para dentro dum poço. Velavam por ele sopros inquietos que levantavam os véus do seu mesmo espaço. E era a respiração dos que não existiam ainda diferenciados, dos que não existiam de nunca ter existido, que se agitava dentro do peito do coração de pomba, do seu não-peito.Não existia Saudades, nem Adonai, nem estrela de Santiago. Ainda não havia a pedra em chamas. Hadid, e se havia, não se sabia como encontrá-lo. O esconderijo era distância e proximidade, contracção e quietude. Movimento puro. Era ainda o não lugar de onde todas as possibilidades podiam (ou pediam) a manifestação do existir.A Humanidade haveria de experimentar essa antiquíssima sensação de ocupar todo o espaço em todos os pontos e em todas as direcçãoes, muitas vezes, tantas, que haveria de lhe ser devolvida à memória, depois de passadas as águas do rio do Esquecimento, as águas que ainda não existiam.E de tanto não haver, o Homem se lembrou de o esquecer. Desaparecera-se-lhe até a lembrança, mas não a sensação. Tantas vezes que o Homem haveria sempre de o reviver quando, a sós, ouvindo apenas o não audível, vendo apenas o não visível, sendo apenas do Ser sem Ser, se lhe fechariam os olhos, sobre outro sono ainda. Talvez que do fundo dos corredores do tempo haja de encontrar aí, o som fundo da Origem. E contudo, tantas vezes, quando, em repouso, embarcamos nessa barca e parece que foi aí que nascemos. Chamam-lhe Amor – sou eu que o digo que agora penso alto para que me oiçam, e já não tenho febre - porque a memória é a de uma sensação física de não pertença extremamente pura e pacificadora.Por agora, era a Casa, a desmesurável casa que tem a forma sem forma de uma maçã (para usar metáfora, mais moderna). Mas, na verdade, não tem forma nenhuma, e é só espaço imenso. No deserto, no mar, nos bosques sombrios, nas clareiras iluminada, aí, ouvimos sem escutar (pois não havia ainda escuta), falámos sem falar (pois ainda não havia fala). Só som. Só Som. E uma casa a vogar no espaço infinito debruado de estrelas mansas – só para compor, pois estrelas também não as havia. E essa casa ainda não estava em construção, nem Universo se chamava, nem Mãe, nem Nada. Era o Nada. Aí era o Nada. A Casa sem casa, o Ser no Ser, sem Ser.

14 comentários:

  1. boa abordagem do princípio do nada.
    Que mesmo sendo nada também teve principio.

    beijo

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  2. É "Platerito", é aqui uma homenagem ao Senhor da Casa da Serpente e é onde tantas vezes nos "princip(i)amos".:)

    Um beijo, irmão.

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  3. Manda-me o senhor deste lugar - que do vasto faz cercano e do longe nos estreita - ancião de meus dias, que à soleira desta casa deixe de Donis mais um.
    Ora mais se cala, assim, esse que canta a frol e se acoita em Guilhade: sabe ele as razões (se as há e conheça) de deixar poema à porta de tal morada, aos pés do futuro da poeta ... das saudades.


    "Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris;
    J'unis un cœur de neige à la blancheur des cygnes;
    Je hais le mouvement qui déplace les lignes.
    ....
    Viens-tu du ciel profond
    Ou sors-tu de l'abîme, o Beauté?"

    Charles Baudelaire
    (« La Beauté», in "Les Fleurs du Mal")



    "A leveza da beleza sem peso"

    Sistema da fala em vasos comunicantes
    é o modo como a pálpebra das coisas nos convoca
    para, incessante paradoxo, ser em nós o que de nós mais ri:
    o que nos espanta nos não surpreende...!

    - "Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l'abîme?"
    - Venho do abismo do rosto, e subo à bíface fundura!

    Do ventre da mátria para a pátria das águas,
    margens geminadas dum mesmo mar,
    embrenha-se-me prenhe o parir-me glauco.

    Lazúli na coloração da alma em sua carne
    viva, sou esfinge incompreensível que tudo
    melhor compreende ao compreender-se nada:
    quem quererá entender quem tudo desentende?

    O movimento que as linhas altera testa-me
    (a si mesmo o traçar da linha detesta):
    as curvas na beleza são rectas que ao excesso
    do esplendor se moldam, para sequer serem.

    Neva no meu coração como na alvura dum cisne,
    que tem mira no alvor de seu mirar: nele,
    nadar é antecâmara de quase um nada...

    …mas um tal é mais um tudo nada
    que é mais que tudo em seu ser: é nada...!

    Donis de Frol Guilhade

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  4. Caríssimo Lapdrey,

    Queira fazer o favor de por mim dizer ao Senhor Donis de Frol que lhe respondo já, o que fará chegar, breve.

    Je trône dans mon coeur
    Et sur la surface des eaux
    je me laisse flotter
    pour taire le miracle
    De telles lignes vides
    Òu bien de L'Abîmal silence
    sera, ma voix, ma propre cicatrice
    Et du ventre sacré de la distance
    J'entenderait parler de ce qui se tait en moi, et sors de son abîme
    les fleurs de son jadis.

    Na pátria lei das águas que a si mesmas banham
    Venho entornar meus cantos
    E deles me abismar
    Desfiar seus perfumes e perder-me de mim
    Por tão ditosa barca me levar daqui
    Por tão tudo me ser
    À flor do nada, enfim.

    Do seu cantar me prendo
    e ele em mim me banha
    Neva no coração a natureza de alva
    Luz que no peito extreme do silêncio, me leva presa à frátria
    das palavras.

    Do abismo saio e chego ao mesmo mar
    Em que subida a maré a tudo cobre
    E inunda. E nessas águas, Senhor,
    Me não hesito
    De perecer de amor, para não morrer.

    (Isto hoje está bonito, está!)
    Se não me chega o tradutor, ainda erro sobre o próprio erro!)

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  5. Manda meu senhor Donis de Frol Guilhade, em tudo ele sempre submisso à “pátria lei das águas”, vos volva, senhora, sua volta, um tanto (diz) mais salpicada de as agitações de tais “águas da pátria”.
    E, com o assentimento vosso, segue em atlante mote, vindo eu aqui humílimo por seu nome, em vosso regaço “entornar seus cantos”, que a “desfiar seus perfumes” as anexas rosas logram melhor efeito.
    Mais faz saber “em que subida a maré a tudo cobre e inunda” nele: posto que “tudo (...) será flor do nada”, a pátria no “peito extreme do silêncio, (...) leva presa à frátria das palavras”.


    "Atlante idade"

    (À une dame dont l'âme se laisse "flotter sur la surface des eaux, pour taire un certain miracle que fait sortir de son abîme
    les fleurs de son jadis")


    Fica entre os continentes que jamais conhecerei, quais pulmões
    de mim, faca líquida que delimita o aqui e o lá.

    Aquém, onde espelha o que não sou, há uma aquátil película
    que inunda a superfície de meu fôlego: sou o que ainda não é...

    Além, na extensão sem lonjura que me é remo, sou o que em mim é
    o que hei-de ser: hei-de ser o que já sou...

    É peixe alado o que em mim nada ou navegue. Ignoro náutico o voo
    dos avoengos atlantes: tenho meu leme na lemúria.

    Seres sem idade habitam a profundura que não hei. Sem nome
    e com silêncio, o ponderar medito dos recifes em que a alma desencalho.

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  6. Será que nessa casa há algum livrinho para roubar? ups, para ler, depois prometo que devolvo :)

    Bonito texto, parabéns!

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  7. Caríssimo e gentil Lapdrey,

    (À un certain chevalier des eaux du néant, que du silent fait son retour aux illes fortunées de l'ancien rêve)

    Chegados, Senhor, a domínios atlantes, grata pelas rosas
    Que de intenso olor cobrem a distância entre mares bem longínquos
    Aqui, em plenas águas que houve, oiçamos o silêncio de não sermos

    Senão o que seremos, que assim é a lei dos mares onde peixes com asas
    abraçam os dois elementos. Se de terra é o meu peito, de água é a minha secreta origem
    E nos meus braços a asa se torna peixe. Não temais, pois, por nós, nem nos tememos

    Dos vossos lêmures traços, a luz é atlântica na distância da Saudade
    E nela o silêncio esbate traços humanos, ou pedras de enredar a alma nas suas mesmas redes.

    Respondei isto a Donis, que ele, entenderá de meus anseios. Agradeça as rosas. Diga-lhe que as guardarei em meus livros de versos e na memória os acharei.

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  8. Porque há o Ser e não o Nada? Será porque os poetas, como escreveu Pascoaes, são "cúmplices de Deus no crime da Criação"?

    Belos textos, Saudades, Lapdrey e Donis! Mas não sei se vos perdoo a poética prestidigitação. Nada nem ninguém é inocente e a beleza muito menos.

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  9. Nobre Paulo,
    Amigo,

    Quanto à heideggeriana questão.
    Se nem ele, Heidegger, nem porventura outros tão fundos ou mais altos do que ele - no pensar do quanto se pensa ou se não pensa, nisso mesmo ainda pensando – lograram definitivo responder, como o ousaria eu, paupérrimo no modo de ser tão-só lugar de orfaica “acontecência” na fábrica de um mais luminoso e convocante dizer que humano, não humano ou inumano seja?
    De melhor grado me arrimaria eu ao mais arcaico sentido de em tudo viver em “modo de porventura”, se nisso ora se entendera (como mais antigamente se entendeu) o ser e tudo viver “por auentura”.
    Seria, assim, aventura todo o evento e qualquer advento, posto à ventura entregues sempre coitas e cuidados.

    Quanto a Pascoaes, e sua cumplicidade em “crime” saudoso do que sabemos, ou sabemos que não sabemos.
    São crime e crise étimos ramos de um mesmo tronco. Assim, apenas acede ao firmamento da copa de tal “pluriverso” quem não cuide de ser pecado o que apenas é mero reflexo de ser no estar a caminho: a caminho de quanto se já tem, cais viventes que somos, a que ancoramos entre partir e voltar, entre esse ir para não mais voltar, ainda que se volte ao mesmo porto de onde se rumou ao viajar ao Deus dará, que só ele e o além dele dá quanto retira e, dele nos retiramos para inteiramente tê-lo como O que nos tem, por nada ou por tudo.

    Pelo que a prestidigitação poética diz respeito.
    Quanto ao que de poesia aqui haja, tem ela sempre a sinceridade do mesmo fingir que nela há quando a verdadeiramente haja.
    O poeta fala sempre do que não há, mas há que haver.
    Finge como quem não finge: quanto mais o logre, mais enorme se agiganta.
    A poesia, é verdade, mente com a verdade e na verdade de mentir di-la em sussurro a quem entenda ou, como diz alguém que todos sabemos que sabe (o) que diz: “sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento de meus versos”.
    Assim só, “faz que [se] leia mais do que [se] vê escrito”.

    De ficção, finalmente, da coisa ficta, se tem dois sentidos e sentir: o que se tenha por real e verdadeiro existe, ainda que não haja; o que se tenha por ficção de ser, ainda que de sincero modo o seja, não é, posto que o ser nele se recusa a sequer permanecer à porta.

    Bom Paulo, ficção de vida é juntar em igual e leve jugo o facto e o ficto.
    A nobreza (disso), de tudo preserva: sobretudo preserva o que nos preserva de nos não preservarmos no que se nos não reserve.

    De tal sorte quero eu viver: como se não vivesse, como se morte não houvesse (qual não a há como a supomos)!

    Grato em extremo, irmanado por aquilo que se não agradece, pois em nós é graça, de graça.
    Saúde!

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  10. Paulo Borges,

    Há muito, desde antes de haver tempo, que sabemos que na "Casa do Pai há muitas moradas". Tu mesmo o dizes. Perdoa, pois, esta que te trouxe "A Casa" para a "Casa da Serpente", aqui mesmo a tenha criado outra que a mesma. E também aos "florais" e aos "jograis", actores desse acto de prestidigitação,que lhes sirva de atenuante o muito amor que te têm.

    Grata, Paulo.

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  11. A poesia já está na rua, ó divino de ombros largos e elevadas ideias!
    Não haveis dado conta de tal sucesso,mestre?
    Creio que nem em Aristóteles haveis reparado...
    Agora é talvez tarde... é já noite platónica...

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  12. noite platónica...contemplação...reminiscencia...reencontro com a Verdade!

    (...anseio por um toque de eternidade...)

    viva a poesia!!!

    a nossa casa + fluida e espontanea, no acto de se ser, trans/re escrever

    fragmentus

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  13. Saudades,

    hoje quero sonhar com o meu regresso a essa Casa.
    Com a viagem toda feita de sonho, quero fazer esse caminho de regresso ao Nada, ao Princípio, e a mim mesma, antes de Ser.

    Sonhar com esse Silêncio sem existir... com esse telhado estrelado, sem luz... e, na escuridão dessa Casa, voltar a SER NADA. NADA do que sou fui ou serei.

    :)

    Beijos e desejos de bom regresso ao futuro, agora com a futura chegada do Novo Ano, de novo*

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