"[...] o título deste livro consagra os três símbolos fundamentais do sonho de Nabucodonosor, interpretado por Daniel, decerto o texto central do imaginário quinto-imperial, vieirino e não só: a pedra que, sem intervenção de mão alguma, embate violentamente nos pés de ferro e argila da terrível estátua antropomórfica, com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze e pernas de ferro, pulverizando-a e convertendo-se numa “grande montanha”, que enche a terra inteira (Daniel, 2, 31-45). Esta narrativa visionária é susceptível, como tudo o que é simbólico, de uma multiplicidade inesgotável de leituras, consoante as inclinações e níveis de compreensão dos intérpretes. Dela se pode em geral dizer que, abatendo e dissipando o gigantesco ídolo de pés de barro - símbolo de uma realidade aparentemente total e invencível, mas na verdade parcial e extremamente frágil no seu fundamento e composição, interpretada tradicionalmente e por Vieira como os quatro impérios e poderes civilizacionais histórico-mundanos, e interpretável como figura de todas as falsas e frágeis construções humanas, mentais e materiais - , a pedra, figura do Messias, do Cristo ou da consciência desperta e livre, converte-se na montanha cósmica, símbolo da plenitude e da verdadeira totalidade e universalidade ou do eixo que une céu e terra, espírito e matéria, transcendência e imanência. A moral da história da pedra que pulveriza a estátua e se converte em omni-abrangente montanha, é que a imprevisível e espontânea irrupção do que parece mínimo e insignificante faz na verdade evanescer o que parece máximo, sólido e perene, convertendo-se por sua vez na verdadeira integralidade e totalidade, ao contrário da estátua, que por mais monumental era apenas um ente parcial, composto e localizado.
A partir daqui podemos vislumbrar a sempre fecunda actualidade do imaginário quinto-imperial, não só no plano histórico-civilizacional e teológico-político em que tem sido predominantemente interpretado, mas também no da nossa vida pessoal e do nosso crescimento espiritual. Pois não se aplicará a história da pedra, da estátua e da montanha ao nosso presente histórico, com seus impérios, globalizações, padrões de pensamento e ficções em aparência tão esmagadoramente triunfantes e incontornáveis, mas afinal tão frágeis, desde já minados pela ausência de verdadeiro fundamento e à mercê da ínfima pedra que contra eles subitamente se levante, contendo em si uma imensa montanha ? Pois não seremos potencialmente todos e cada um de nós essa mesma pedra, essa mesma tomada de consciência e essa mesma força que imprevisivelmente pode surgir e derrubar pela insustentável base tudo o que interior e exteriormente nos amedronta, violenta e escraviza, sem outro alicerce senão as falsas projecções da nossa ignorância, medos e expectativas, convertendo-se na ou revelando-se a inabalável montanha da descoberta da nossa natureza íntegra e primordial, único fundamento sólido de uma nova sociedade e de um novo mundo ?"
- excerto da Introdução a A Pedra, a Estátua e a Montanha. O V Império no Padre António Vieira, Lisboa, Portugália Editora, 2008. Livro apresentado na 4ªfeira, dia 12, pelas 18.30, na Igreja de São Roque (Largo Trindade Coelho ou da Misericórdia, em Lisboa).
Parece que o Quinto Império começa com uma grande pedrada...
ResponderEliminarhum...parece interessante
ResponderEliminarpôs-me a pensar!
Temos todos de nos abrir à pedrada do Espírito.
ResponderEliminarPaulo,
ResponderEliminargosto muito de o ouvir dissertar sobre esta narrativa do Nabucodonosor. E penso logo de seguida no "Desterrado". Por que razão será?
Um sorriso