Para um leitor anónimo, para a sua generosa espera até chegar aqui, para a sua paciência para ler o que se segue e para o José António Lozano que nos conta histórias e anda a dançar, no chão de pedra escura da Galiza, com anjos negros. O seu canto ouve-se ainda, porque há quem o continue a ouvir. Também para o João Moita que tendo perdido um amigo, pensa que a escrita o abandonou e não percebeu que anda com o amigo a fazer a viagem que o introduz ao Rilke.
Chegado o Outono e aparecidas as cores das árvores que parecem morrer, mas que apenas ficam desabitadas; chegado o Outono e fechados os ruídos do presente, porque o outrora se escreve na melancolia e não na alegria, entrevejo na qualidade cismativa da luz e no ritmo lento dos ventos, o tom e o som para escrever sobre o Flamingo. Enfim, porque o Outono pode ser um estado, como o Flamingo um ser, que nos religa aos dois reinos a que pertencemos: a morte é o lado da vida que não está voltado para nós, nem esclarecido por nós. A nossa existência mergulha nos dois reinos ilimitados e alimenta-se inesgotavelmente dos dois.
Se, com efeito, assim penso e assim o escrevi, esse mensageiro entre os dois mundos, dos vivos e dos mortos, que a Isabel encontrou pela dedicação do olhar, e que é o Flamingo, pode ser o mensageiro em que Orfeu se tornou depois da sua voz se ter silenciado [Pois é Orfeu. Sua metamorfose/ nisto e naquilo. Não tentemos propor/outros nomes.]; após a loucura das mulheres que o perseguiram; o rio pode ser o corredor estreito por onde passa esperando Eurídice escondida nas vestes coloridas de Perséfone nas Primaveras cíclicas de tudo o que estava morto; pode ser o templo não extático da natureza cujo movimento harmoniza com os pés dançarinos de Wera Ouckama Knoop, ou com as Mártires que avançam em silêncio sem que nenhuma mulher murmure, ou uma criança grite. Só os mortos e os mártires avançam com sons imperceptíveis para o ouvido humano.
Chegado o Outono e aparecidas as cores das árvores que parecem morrer, mas que apenas ficam desabitadas; chegado o Outono e fechados os ruídos do presente, porque o outrora se escreve na melancolia e não na alegria, entrevejo na qualidade cismativa da luz e no ritmo lento dos ventos, o tom e o som para escrever sobre o Flamingo. Enfim, porque o Outono pode ser um estado, como o Flamingo um ser, que nos religa aos dois reinos a que pertencemos: a morte é o lado da vida que não está voltado para nós, nem esclarecido por nós. A nossa existência mergulha nos dois reinos ilimitados e alimenta-se inesgotavelmente dos dois.
Se, com efeito, assim penso e assim o escrevi, esse mensageiro entre os dois mundos, dos vivos e dos mortos, que a Isabel encontrou pela dedicação do olhar, e que é o Flamingo, pode ser o mensageiro em que Orfeu se tornou depois da sua voz se ter silenciado [Pois é Orfeu. Sua metamorfose/ nisto e naquilo. Não tentemos propor/outros nomes.]; após a loucura das mulheres que o perseguiram; o rio pode ser o corredor estreito por onde passa esperando Eurídice escondida nas vestes coloridas de Perséfone nas Primaveras cíclicas de tudo o que estava morto; pode ser o templo não extático da natureza cujo movimento harmoniza com os pés dançarinos de Wera Ouckama Knoop, ou com as Mártires que avançam em silêncio sem que nenhuma mulher murmure, ou uma criança grite. Só os mortos e os mártires avançam com sons imperceptíveis para o ouvido humano.
Animais de silêncio saíam do arvoredo
aberto e claro, dos ninhos de descanso;
e então aconteceu que não era por medo
nem por astúcia que vinham tão de manso,
mas sim porque escutavam. Uivo, grito e rugido
nos corações desvaneciam (…)
Animal de silêncio e da escuta, o Flamingo atravessa essa linha que é invisível na alma humana, onde indistintamente os mortos e os vivos dialogam connosco, nas sombras e no silêncio, e circulam no que no homem é fora do tempo. A alma é sem tempo e sem monólogo. Por isso ela pensa e recorda sem desafios externos, sem provocações e outras interrogações para além das que tem em si. Este Flamingo, como Orfeu, sabe que a palavra prolonga a presença, nesse sentido ei-lo onde não estais, desaparece. A alma não pensa apenas com palavras, na alma há amplos campos, há visões. A alma não evoca unicamente com citações, na alma há melodias aquém das concepções. A alma não responde predominantemente a questões, na alma há sobretudo instrumentos que ensaiam ritmos e orquestrações. É quando se ouve a lira que o pensamento recebe os mortos, é quando se ouve a flauta que o espírito se embriaga, é quando se tocam os tambores que a alma celebra os vindos, os vivos. E há a voz pura de cristal que estilhaça o silêncio e as máscaras e, como o grito, abre no céu as portas que descobrem as planícies verdes onde um corcel marcou na alma a velocidade e, ou um compasso entusiasmados da loucura com que ela brinda a sua semelhança com os deuses e se adentra para o que é inomeável em si.
E tu, leitor atento, não pensas como eu que o Flamingo é o poeta [Pois é Orfeu. Sua metamorfose/ nisto e naquilo. Não tentemos propor/outros nomes.], é Orfeu? É Orfeu que sabe que a poesia não é imagem muda, nem uma voz cega? Orfeu, o poeta (o Flamingo), sabe que o poema alberga a dupla paisagem, a dupla passagem: a imagem e o canto. A imagem poética é a máscara mortuária de uma fronte vencida, de uma fronte perdida:
(…) Aos que gritam, dá ordem,
ó Deus cantor! Que eles ruidosamente acordem,
Sejam como a corrente que traz a fronte e a lira.
Quando Orfeu aprendeu que os mortos não se olham directamente, Orfeu descobriu a poesia. Nascida de uma desobediência relativamente aos deuses, os poetas – que tinham sido proibidos de olhar um rosto morto & vivo – libertos das palavras que narram e enganam, como as de Sherazade e Ulisses, puderam gritar. É na morte que está enraizada a outra e a dupla possibilidade da linguagem: o ruído e o canto.
Foi esse grito ruidoso que acordou a fúria das ménades desesperadas e animalizadas. O ruído é sempre animal e mortal. É por isso que irrita os deuses e Deus. Todavia, nem todo o grito é cru. Quando – como depois João Baptista no texto de Oscar Wilde e no conto de Flaubert – a cabeça se separou, pela violência das ménades do que nele era a animalidade, o corpo, os mistérios do amor puderam ser exaltados como maiores do que os da morte. Mas nesse instante, o grito tornou-se modulado. Foi esse grito – o poético que é profético, que ao ter sido modulado pela voz que sofre desse espanto de ver como no rosto de Eurídice há um rosto vivo que é morto & há um rosto morto que é vivo – que deu origem a essa outra passagem: a da voz para o canto. Nasceu a poesia como canto enlutado. O poema trágico terá sido cantado, entoado, como um grito modulado por quem usava máscara, porque o coro cantava um poema e o poema transportava um morto que ainda falava. Descobrindo que não pode dar a ver, expor os mortos ao sentido apropriativo da Terra e dos humanos, o poeta como o Flamingo, como Orfeu, pode dá-los a escutar. A poesia não conhece os mortos e os vivos, recebe os mortos que estão vivos e os vivos que estão mortos. Só a voz passa pela fronteira que separa o visível e o invisível. A voz não pode ser perseguida. A voz eleva-se, sobe, rarefaz-se, disfarça-se de silêncio, paralisa quanto encanta. Quando na tragédia o actor põe a máscara, como Orfeu se veste de Flamingo, ele mantém na voz do vivo o que se tornara silêncio na do morto e na do vivo que está morto. A máscara é a dupla condição do que está vivo e fala com a voz do morto. Assim também, ler é ensaiar ser o outro e o outro de si: ser vivo e ser morto. O Flamingo, como o poeta, é eminentemente um leitor, um ser que escuta. Atravessa o mundo pondo na sua voz a de todos os outros. O Flamingo não tem voz e não faz ruído. O Flamingo é o silêncio cantante, o rumor sibilante, não é um falante. É um poeta que escuta outros poetas. Escuta Deus. Pois só Deus, como os poetas, emprestou a sua voz aos outros, os chamou para nomear a solidão dos seres, a sua distância à origem. O Flamingo, como Orfeu, ama sem saber quanto, / distâncias maiores
que a morte não quebra.
Sobre a terra o canto
Santifica e celebra.
Creio por isso poder, como evoquei acima, dizer: o silêncio é o lado do discurso que não está voltado para nós, nem suficientemente experimentado por nós. A nossa condição mergulha-nos nos dois reinos ilimitados e alimenta-se inesgotavelmente dos dois.
Somente ao morto é dado
beber da fonte aqui por nós ouvida
quando o deus lhe acena em silêncio, a chamá-lo.
A nós, só o ruído é enviado.
E a ovelha suplica o seu badalo
Pelo instinto manso movida.
Sabendo das distâncias maiores, das rotas que conduzem à fonte, o poeta, perscrutando o ilimitado, percorre a paisagem escutando os sons emitidos e recebidos pela e na alma, porque um morto não se pode ver, mas pode ser ouvido. É por isso que Deus lê alto. É por isso que o poeta procura o bosque para se sentar nessa árvore onde Deus espera morto que a linguagem seja sem julgamento. O poeta reúne as máscaras para que Deus possa escutar o coro a cantar. O Flamingo caminha devagar para não as quebrar. Os poetas sabem que só os mortos não podem ser esquecidos. E por isso, com humildade, ouvem Deus e sabem de cor o que os outros poetas cantaram. Porque para eles, o mundo, os mundos, são o poema continuum.
E não sei, porque a Isabel não o disse explicitamente, se o Flamingo sabe como eu que o maior sentimento de todos é o sentimento da duração, como um acontecimento do acto de escutar, / do acto de compreender, / de ser abraçado, / de ser envolvido, / por o quê?, por um outro sol,/ por um vento refrescante,/ por um brando acorde feito de silêncio,/ que leva à união e à perfeita sintonia de todas as dissonâncias. Será que a Isabel o aprendeu lendo os poetas? Será que ela sabe que quando lê um, o reúne aos outros com quem uniu a sua voz no altar da leitura? Ler é uma religião e a Isabel anda a aprender os mandamentos e os rituais com que se curva perante as páginas, porque uma página escrita é um rosto simultaneamente humano e divino e por isso esconde sempre o seu. Ela anda apenas a aprender a ver o dos outros e o de Deus.
Rilke, o que foi escutado no poema da vida, da duração.
Nota: até à última citação, em itálico, todas as anteriores são de Rilke e extraídas da obra “Sonetos a Orfeu”, a última foi extraída do poema de Peter Handke, “Poema à Duração”.
Isabel, quando aceitará enfim resgatar textos como este da voragem de um blogue, onde jamais terão a atenção e a leitura que merecem, e reuni-los e entregá-los às páginas de um livro, para deleite dos que nelas encontrem o espelho do inominável de si!? Será necessário um abaixo-assinado ou uma petição cósmica!?...
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