1. A milenar tradição da introspecção meditativa e os progressos contemporâneos da microfísica e das neurociências (que hoje se juntam numa convergência histórica, como nas experiências realizadas no MIT, em Massachusetts, e nos encontros Mind and Life, o último dos quais de 6 a 12 de Junho deste ano, em Nova Iorque) parecem indicar não ser possível encontrar, quer na constituição da chamada matéria, quer na da chamada mente, ou seja, nisso cujo conjunto designamos por realidade, uma mínima entidade que exista em si e por si e que permaneça idêntica a si mesma, ou seja, que tenha características próprias. Todas as dimensões da chamada realidade parecem obedecer assim a duas leis fundamentais, a de interdependência e a de impermanência, que se resumem na sua ausência de características ou qualidades intrínsecas. Como se pode constatar na mínima experiência perceptiva e como a observação científica confirma, sujeito e objecto constituem-se mutuamente e interagem num dinamismo e numa metamorfose constantes, como meros fenómenos recíprocos, sem essência própria. O conceito de identidade parece ser assim uma abstracção desadequada para expressar o real, sem outro fundamento senão o de ser uma ficção convencional e funcional, que serve o reproduzir de uma tradição fortemente entranhada nos hábitos culturais, psicológicos e sociais do senso comum humano.
2. O conceito de identidade nasce, como o seu correlato, o de alteridade, de uma experiência ingénua e irreflectida, na qual, devido a hábitos inconscientes, o sujeito se crê distinto do objecto, o eu do não-eu, o mesmo do outro, o idêntico do diferente, ao mesmo tempo que esses termos da experiência se crêem reais e existentes em si e por si, com características e qualidades próprias, positivas, negativas ou neutras, que nunca são mais do que projecção da percepção inconscientemente condicionada. Este estado, que se pode chamar de ignorância dualista, origina três tendências da experiência mental-emocional na relação sujeito-objecto: 1 – o fascínio e o desejo-apego, caso o objecto seja percepcionado como atraente e positivo; 2 – o medo e a aversão, caso o objecto seja percepcionado como repulsivo e negativo; 3 – a indiferença, caso o objecto seja percepcionado como neutro. Qualquer destas experiências resulta em conflito e sofrimento, primeiro interno e depois externo, indissociável de uma extrema vulnerabilidade perante todas as vicissitudes da vida, pois a mente dominada pelo apego e pela aversão não pode assegurar de modo algum a posse do que deseja nem a exclusão do que rejeita, devido à lei da impermanência e metamorfose constantes de tudo, sujeitando-se assim constantemente à carência do que deseja ou ao medo de o perder, bem como à ameaça do que rejeita ou ao medo de o não evitar. Por outro lado, a indiferença é uma falsa alternativa, que apenas gera a experiência de solidão, de entorpecimento mental e de despotenciamento vital.
Da ignorância dualista e da combinação das três tendências referidas resultam as pulsões emocionais inerentes a todos os actos e omissões, mentais, verbais e físicos, que as tradições ético-espirituais, teístas ou não-teístas, religiosas ou laicas, designam como actos negativos, faltas, pecados ou toxinas mentais, como hoje alguns preferem: desejo possessivo, ódio e cólera, inveja e ciúme, orgulho e arrogância, avidez e avareza, torpor mental e tristeza, entre muitas outras. Em qualquer dos casos, antes de lesarem os outros, estas pulsões lesam a mente do próprio sujeito a partir do primeiro instante em que nela surgem, distorcendo a percepção da realidade, gerando ignorância, insensibilidade e tormento interior. Por isso são objectivamente negativas, independentemente de qualquer doutrina moral ou revelação religiosa.
3. Um olhar desapaixonado e realista sobre o processo e a história da civilização humana, desde os seus primórdios até hoje, não pode deixar de constatar que tudo – a organização social, a ciência, a técnica, a política, a economia, a cultura, a educação e a religião - tem sido predominantemente movido pela ignorância dualista, o apego, a aversão e a indiferença, bem como por todas as suas combinações possíveis, com o resultado evidente, em termos gerais, de a humanidade até hoje sempre ter obtido precisamente o que mais rejeita, o sofrimento, e sempre haver falhado o que mais deseja, a felicidade: prova evidente de que o desejo-apego e a aversão resultam precisamente no contrário do que buscam. As únicas excepções a esta monumental ilusão e fracasso colectivo, habitualmente camuflado com os nomes de “progresso”, “evolução”, etc., são os seres que despertam e se libertam da ignorância dualista e das suas consequências mentais e emocionais: aqueles que nas várias tradições se designam como sábios, santos, etc., e que se consideram mestres espirituais quando à libertação individual acrescentam o amor e a compaixão de continuarem a agir para disso libertarem os outros.
4. Aplicada à questão das sociedades, das culturas, das nações e das pátrias, esta visão constata que nenhuma delas existe em si e por si, com uma identidade e características irredutivelmente próprias. Todas, pelo contrário, apesar de apresentarem singularidades em devir, nascem, vivem e morrem ou metamorfoseiam-se de acordo com as leis fundamentais de interdependência e impermanência que abrangem todas as dimensões do real. Com efeito, quem pode, por exemplo, pensar o que é Portugal separando a sua história e cultura das de todos (ou quase) os povos europeus, africanos, sul-americanos e orientais ? O conceito de identidade nacional é pois, tal como o de identidade pessoal - e sobretudo se pensado de forma essencialista ou substancialista - , uma mera abstracção que em última instância apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana.
5. Tal como acontece quando se extrema a bipolarização eu-outro, o extremar da suposta identidade cultural ou nacional como uma essência única, permanente e independente das demais, leva ao nacionalismo ou patriotismo que potenciam essa ignorância dualista e esses complexos de apego ao que parece ser próprio e de indiferença ou aversão ao que parece ser alheio que já vimos serem as causas fundamentais de insensibilidade, sofrimento e conflito para quem por elas se deixa dominar e para os demais. O nacionalismo ou patriotismo, levando a amar a sua cultura, nação ou pátria acima das demais, é pois injustificável e condenável em termos sapienciais e éticos, sendo incompatível com qualquer projecto de emancipação da consciência e de serviço do bem comum a todos os homens e a todos os seres.
6. Há todavia a possibilidade de se conceber e praticar uma outra forma, não de nacionalismo, mas de patriotismo, o patriotismo trans-patriótico e universalista, que apenas preze, cultive e promova, numa determinada tradição cultural e numa determinada pátria, aquilo que nela houver de melhor, ou seja, de aspiração ao bem comum universal, não só dos homens, mas de todos os seres. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que em última instância aspira a orientar as energias de uma dada nação para que progressivamente se superem todas as fronteiras e barreiras, primeiro mentais e afectivas, e depois institucionais e territoriais, entre todos os povos e culturas, de modo a que a comunidade humana possa expressar o mais possível a estrutura e as leis fundamentais da própria realidade: ausência de id-entidades com características intrínsecas, interdependência, impermanência. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o que aspira a romper o círculo vicioso e infernal em que tem decorrido e decorre a história da civilização humana e a devolver humanidade e mundo ao Paraíso que em si intimamente encobrem. O patriotismo trans-patriótico e universalista é o único que está de acordo com a milenar tradição sapiencial da humanidade e com a ciência contemporânea, convergindo para a verdadeira evolução que é a da consciência e para o verdadeiro progresso que é o espiritual, entendendo por tal o despertar da dualidade que permita ver e sentir o outro como a si mesmo e assim visar a emancipação mental, cultural, social, política e económica de todos os homens e o respeito por todas as formas de vida.
7. Este patriotismo trans-patriótico e universalista é o que encontro no melhor da ideia de Portugal e da comunidade lusófona que – depurada do lastro de muitos condicionantes - interpreto em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, para apenas referir os mais destacados. Foi ele, embora ainda informulado e sem a fundamentação aqui apresentada, que inspirou o Manifesto da Nova Águia e a Declaração de Princípios e Objectivos do MIL – Movimento Internacional Lusófono - , cujos textos iniciais redigi e dos quais oitenta por cento ou mais permaneceu nas versões finais. É apenas à luz do patriotismo trans-patriótico e universalista, como projecto fundamentalmente ético-espiritual e só a partir daí cultural, cívico e social, que considero fazer sentido a existência do MIL. Por isso, aliás, propus e foi aceite que as reuniões da Comissão Coordenadora do MIL começassem com alguns minutos de silêncio meditativo, em que cada um se comprometesse consigo ou com o que considerasse mais sagrado a não ter outro objectivo senão o bem comum de todos os seres. Não acredito, aliás, noutra possibilidade de transformação do mundo – a nível cultural, social ou político - que não se enraíze primeiro numa profunda transformação da mente que percepciona o mundo. A grande revolução futura e já presente, em todo o planeta, é a união inseparável da meditação e de todas as esferas da actividade humana, incluindo a económica e a política. Quando digo meditação refiro-me ao simples treino da mente para ver as coisas como são, para além da dualidade, do apego e da aversão, para além do medo e da expectativa, para além do passado e do futuro, no aqui e agora presente. Nada de místico, esotérico ou exótico e que não vem do Oriente porque a mais profunda cultura ocidental, clássica ou cristã, sempre o conheceu. É a redescoberta disso, mais do que qualquer ideologia laica ou religiosa, a grande novidade que cresce hoje como bola de neve em todo o mundo.
Digo e publico isto, no momento em que se prepara uma refundação do MIL, porque tenho hoje fortes suspeitas de que muitos ou a maior parte dos que aderiram a este movimento e nele têm responsabilidades não tenham percebido toda a dimensão do que nele é proposto. A começar por mim próprio.
Vamos é criar um outro Movimento! E a partir deste blogue!!! Tão giro que seria
ResponderEliminara proposta é no mínimo aliciante.
ResponderEliminarmesmo que do alto da falésia,
com asas de papel,
o voo não deixa de
tentar
Isto é um blogue de poetas, artistas e estetas... Destes também não há a esperar muito: ficam-se pelas fruições das suas próprias criações e das criações dos outros... Uma outra forma de alienação e anestesia, como o consumismo e a política comum... Creio que o que o texto propõe é outra coisa... Mas duvido que haja muita gente para o compreender... Veja-se o que se passa nos comentários ao mesmo texto no blogue da Nova Águia...
ResponderEliminarSr. observador,
ResponderEliminarConceda-me que lhe diga que este blogue é antes de mais de Pessoas.
O que há a esperar delas? Nada.
Cada um que se cumpra e que não esteja à espera dos outros para isso.
E o resto que vier que venha.
Atentamente.
A meu pequeno ver, a criação de um grupo deste género deveria ter como uma das metas a cada vez maior diluição dos grupos. Cada ser no fundo não pertence a nada, só a si mesmo, sendo que o Ser é o próprio nada infinito.
ResponderEliminarOutro aspecto é que a sua criação fosse o mais livre e espontânea possível, porque é esse modelo natural em que a vida acontece...
E são estas as ideias que me vieram agora, mas não me confundam com elas por favor.
(nada infinito não sei se é o melhor modo... queria dizer o ilimitado)
ResponderEliminarPaulo,
ResponderEliminarEste seu texto é fundo e "fundador", merece por isso toda a nossa atenção e, sobretudo meditação. Não vou ainda comentá-lo. Digo apenas que é um texto do futuro da humanidade. Penso que esta ainda não está preparada para o compreender nos seus fundamentos, talvez menos ainda para a "acção" de acordo com eles. Contudo, a acção sem
o respeito por esses mesmos fundamentos, de nada vale ou vale muito pouco. Sabemos que o fazer implica riscos. Medimo-los. Se o fazer apenas orientado para mudar o chamado «fora de nós» não for precedido por uma séria meditação do que em nós tem que ser mudado, perpetuamos enganos antigos e depositamos as nossas esperanças no logro e na ilusão de pensar a realidade como coisa idêntica a si mesma, identidade ou pátria, e com eles sofrermos. Agitamo-nos em vão.
A reflexão e a calma impõem-se e têm que partir de dentro, da compreensão de que o mundo não é uma "equipa de futebol" onde os ganhos e as perdas apenas perpetuam
cisões, rivalidades e outros sentimentos negativos. Escolher o caminho mais difícil implica incompreensão e por vezes conflito.
Voltarei, se puder, a este seu texto. Lê-lo-ei, de novo.
Um abraço.
Depois de ler a caixa de comentários do teu texto na Nova Águia, fiquei a matutar: como é árdua a tarefa de nos fazermos entender... quantas barreiras, obstáculos...quantos véus. Dinamitar os contrafortes do Eu é uma cruz. Acho que hoje entendi verdadeiramente a mensagem da paixão e crucificação de Cristo.
ResponderEliminarSe um décimo do que escreveste hoje, neste texto, passar numa Assembleia Geral do MIL, adiro! Adiro a esse movimento porque ele é fundação de um novo paradigma, de um novo entendimento do que somos, a real responsabilização do Homem perante as suas acções. Isto seria o nascimento do Super Humano.
Fica descansada que isso não acontecerá. O M.I.L. não é o M.I.B., movimento internacional budista
ResponderEliminarE impressao minha ou eu reconheco esta forma de escrever, este tom de voz, de qualquer lado?
ResponderEliminarAlem de que nao me parece que seja uma voz feminina, ao contrario do que afirma no blogue da NA.
ResponderEliminarCaro anónimo:
ResponderEliminarO Budismo não precisa de Movimento porque é uma Via, nem de ser Internacional porque é Universal, além disso não pretende o Budismo pelo Budismo, o que ele almeja é a Libertação. Sendo assim seria V.U.L.!
Sabes que o mais bonito em ti é o anonimato, usa-o bem!
Um grande abraço para o grande círculo dos mortos vivos, uivadores da grande desgraça humana que é nascer póstuma.
Paulo,
ResponderEliminarjá li três vezes o texto para ter a certeza que já o conhecia, em mim ele ressoava. E a caixa de ecos funcionou. Ética e sapiencialmente este texto é admirável. Gosto quando em cada um de nós a SOFIA fala, (brotando, dimanando do chamado mundo poético-literário, para o chamado mundo real-político e social) e em si ela fala muito bem. Este texto passa por dentro de mim e leva-me o nome. Onde tiver que o assinar, assino!
Muito interessante. Brilhante, irei ler tudo outra vez.
ResponderEliminarUm abraço