A escola é um lugar de contemplação e da lenta aprendizagem da contemplação, acção superior e excessiva. Agora não há texto na escola. A Europa escreve que é preciso salvaguardar a memória, mas a Europa cria programas escolares que destroem o seu Outrora. Por isso, a identidade dos seres humanos vai construir-se num isolamento sem redenção: sem o seu passado, os seres humanos serão ilhas selvagens, daquelas por onde Ulisses foi deixando os que feria e enganava. Não serão visitados pelas vozes que pensaram e provocaram positivamente as consciências. Nas suas mentes não aportarão Heraclito de Éfeso, nem Tales de Mileto, nem Parménides de Eleia. Os nossos alunos, eles e elas, Eles e Elas, não vão ter narrativas nem poemas para contra-agirem com a sua vida banal e enfraquecida. Gritarão, mais ou menos depressa como Ella Gerricke, dói-me “aqui” e “aqui” é o coração e o estômago da vida, da sua “existência sensível” dilacerada e sem interlocutores, fechada numa mentira incomunicável e corrosiva. Vão encher-se da sua experiência de vida disposta num programa de vídeo, ou num portefólio cheio de vazio sem poesia e sem pensamento.
Ela reconhece-se numa infância que não teve. Como é que alguém se reconhece no que não viveu, mas disso se recorda? No texto que foi distribuído ao público Beatriz Batarda e Carlos Aladro, o encenador, perguntam-nos: “será que acreditar na Branca de Neve é sinónimo de estupidez ou de capacidade de confiar no Homem?”Ella não é estúpida. Os alunos também não. Durante cinquenta anos engana os outros e nunca se engana a si. Mas também não me parece que confie no Homem. Não sei se os alunos confiam nos seus professores. Em alguns, pontualmente. Não sei. Ella Gerricke nem sequer confia nas crianças com que se cruza na vida. Eles, os alunos, nunca foram crianças e também não sabem o que é ser adulto. E, então de novo pergunto-me: que fazia a Beatriz Batarda sentada no palco a ver-nos entrar? Ela espera. Ela, Ella Gerricke, confia no Homem que há-de vir. Essa humanidade, após a Queda do Muro, será a que somos desde já? Ella não espera por Deus. Ella não espera por nenhum Ele transcendente, ou por um Messias redentor. Ella é clara a esse respeito. Já quase no final Ella diz, a olhar para o céu: ao sétimo dia até Ele descansa e olha para o seu mundo de plástico e vê como nos arranjamos. Também Ella resolve descansar e esperar pela Branca de Neve. Neste momento da peça não pude deixar de me perguntar se Ella não era Ele (?). Como nas boas narrativas judaicas. E, caso o fosse, de que estaria Ella à espera? E Ele? Senti que esperavam pelo Homem. Como se afinal não fizesse qualquer sentido falar-se de pós-modernismo, porque não creio que tenha havido qualquer humanismo para morrer, porque o humanismo me parece o movimento por haver, por nascer. A vida é o sétimo dia. Nada garante que Deus, como Ella, depois de terem trabalhado tanto, tenham tido força para continuar. Mas talvez seja nesse descanso dos que sofrem que estes que ficam encontrem a coragem da sua infância para além do tempo e para além do cansaço. Porque a nossa identidade é qualquer coisa que está no Outrora como a Branca de Neve. Amanhã quando receber os alunos estenderei a mão e farei com eles o caminho. Contarei a Branca de Neve e prometo a mim mesma levá-los aos jardins onde as narrativas estancam as nossas dores de “aqui”. Porque é preciso que percebam que quando alguém nos pede silêncio, não nos está a mandar calar, está a construir a paisagem para que muitos possam chegar às nossas vidas famintas e connosco poderem caminhar e cantar o refrão entusiástico de estarmos vivos, depois do sétimo dia. O que só pode querer dizer que cada um pode ser Ele e Ela. Ella Gerricke ensina-nos também isto: há monólogos que são o mais veemente encontro e diálogo. Não ouviu a Beatriz e não o ouvirão os meus alunos, mas quando sentada os vir chegar sentirei que na Terra foram esperados e é por isso que parecerá que descanso e às vezes não os deixarei falar e outras não serei nada para os ouvir quase a gritar “aqui!”. Amanhã vou começar a fazer de professora e, como a Beatriz Batarda ou Ella Gerricke, também espero o Homem e o Humanismo que há-de vir. Porque outra vez quer dizer, ainda e para sempre, era uma vez...
Ela reconhece-se numa infância que não teve. Como é que alguém se reconhece no que não viveu, mas disso se recorda? No texto que foi distribuído ao público Beatriz Batarda e Carlos Aladro, o encenador, perguntam-nos: “será que acreditar na Branca de Neve é sinónimo de estupidez ou de capacidade de confiar no Homem?”Ella não é estúpida. Os alunos também não. Durante cinquenta anos engana os outros e nunca se engana a si. Mas também não me parece que confie no Homem. Não sei se os alunos confiam nos seus professores. Em alguns, pontualmente. Não sei. Ella Gerricke nem sequer confia nas crianças com que se cruza na vida. Eles, os alunos, nunca foram crianças e também não sabem o que é ser adulto. E, então de novo pergunto-me: que fazia a Beatriz Batarda sentada no palco a ver-nos entrar? Ela espera. Ela, Ella Gerricke, confia no Homem que há-de vir. Essa humanidade, após a Queda do Muro, será a que somos desde já? Ella não espera por Deus. Ella não espera por nenhum Ele transcendente, ou por um Messias redentor. Ella é clara a esse respeito. Já quase no final Ella diz, a olhar para o céu: ao sétimo dia até Ele descansa e olha para o seu mundo de plástico e vê como nos arranjamos. Também Ella resolve descansar e esperar pela Branca de Neve. Neste momento da peça não pude deixar de me perguntar se Ella não era Ele (?). Como nas boas narrativas judaicas. E, caso o fosse, de que estaria Ella à espera? E Ele? Senti que esperavam pelo Homem. Como se afinal não fizesse qualquer sentido falar-se de pós-modernismo, porque não creio que tenha havido qualquer humanismo para morrer, porque o humanismo me parece o movimento por haver, por nascer. A vida é o sétimo dia. Nada garante que Deus, como Ella, depois de terem trabalhado tanto, tenham tido força para continuar. Mas talvez seja nesse descanso dos que sofrem que estes que ficam encontrem a coragem da sua infância para além do tempo e para além do cansaço. Porque a nossa identidade é qualquer coisa que está no Outrora como a Branca de Neve. Amanhã quando receber os alunos estenderei a mão e farei com eles o caminho. Contarei a Branca de Neve e prometo a mim mesma levá-los aos jardins onde as narrativas estancam as nossas dores de “aqui”. Porque é preciso que percebam que quando alguém nos pede silêncio, não nos está a mandar calar, está a construir a paisagem para que muitos possam chegar às nossas vidas famintas e connosco poderem caminhar e cantar o refrão entusiástico de estarmos vivos, depois do sétimo dia. O que só pode querer dizer que cada um pode ser Ele e Ela. Ella Gerricke ensina-nos também isto: há monólogos que são o mais veemente encontro e diálogo. Não ouviu a Beatriz e não o ouvirão os meus alunos, mas quando sentada os vir chegar sentirei que na Terra foram esperados e é por isso que parecerá que descanso e às vezes não os deixarei falar e outras não serei nada para os ouvir quase a gritar “aqui!”. Amanhã vou começar a fazer de professora e, como a Beatriz Batarda ou Ella Gerricke, também espero o Homem e o Humanismo que há-de vir. Porque outra vez quer dizer, ainda e para sempre, era uma vez...
"Mais uma vez encontro a tua face,
ResponderEliminarÓ minha noite que julguei perdida.
Mistério das luzes e das sombras
Sobre os caminhos de areia,
Rios de palidez que escorre
Sobre os campos a lua cheia,
Ansioso subir de cada voz
Que na noite clara se desfaz e morre.
Secreto, extasiado murmurar
De mil gestos entre a folhagem
Tristeza das cigarras a cantar.
Ó minha noite, em cada imagem
Reconheço e adoro a tua face,
Tão exaltadamente desejada,
Tão exaltadamente encontrada,
Que a vida há-de passar, sem que ela passe,
Do fundo dos meus olhos onde está gravada."
Sophia de Mello Breyner Andresen
Com Amor.
Isabel,
ResponderEliminartambém gosto de partilhar contigo as tuas reflexões sobre a Educação.
Lerei com mais atenção o texto.
Depois volto.
"Ensinar com seriedade é lidar no que existe de mais vital num ser humano. É procurar acesso ao âmago da integridade de uma criança ou de um adulto. Um Mestre invade e pode devastar de modo a purificar e reconstruir. O mau ensino, a rotina pedagógica, esse tipo de instrução que, conscientemente ou não, é cínico nos seus objectivos puramente utilitários, é ruinosa. Arranca a esperança pela raíz. O mau ensino é, quase literalmente criminoso e, metafóricamente, um pecado. Diminue o aluno, reduz a uma inanidade cinzenta a matéria apresentada. Derrama sobre a sensibilidade da criança ou do adulto, o mais corrosivo dos ácidos, o tédio, o metano do ennui."
ResponderEliminarAs Lições dos Mestres
de George Steiner
Isabel,
esta passagem, seguramente, confirma aquilo que tu querias dizer.
Beijinhos
Isabel,
ResponderEliminarLi o seu texto. Uma vez, e outra, e ainda me custa falar dele. Talvez porque o sorriso que levo no rosto, quando olho os alunos, está marcado por uma consciência ferida por tudo o que é tão contrário ao mesmo amor...
Mas o que mais me doeu no seu comentário foi a afirmação, dolorosamente verdadeira, de que o texto quase desapareceu da escola.
E isso é triste. Quando se aponta à ferida do estômago,o amor ao texto e a disponibilidade mental para ir com o sonho de «Era uma vez...» é o soco no estômago que o professor
transforma no sorriso de crença na bondade, que não o pode abandonar.
O seu texto está de tal forma escrito (e bem escrito) que a nossa esperança, vista ao espelho que mostra a realidade,ou uma parte dela, ou o que ainda resta dela, seja ela o que for, tem que se firmar nas suas raízes, para não desfalecer.Vou levar "texto" para os alunos. Eles vão trazer "texto" de casa, e,se o meu sorriso nesse texto, for capaz de os contagiar. Virá outro texto.
E a Branca de Neve de tanto ser chamada, há-de acordar...
Espero que consiga gravar nas almas deles, que a vida não é só "dor de barriga" ou Branca de Neve...
Se a escrita na língua pátria já está desaparecida há muito. Talvez o texto reduzidíssimo, só uma frase, uma palavra repetida muitas vezes, lhes avive a memória, nem que seja uma nostalgia inexplicável e perturbadora, de que houve um tempo em que o texto, a escrita foi escritura e, de sagrada, se tornou
sentido. Assim o espero.
Era uma vez...
«Lidar no que existe de mais vital no ser humano, é a tarefa de maior grau de responsabilidade que conheço.
O ensino cínico para que nos querem empurrar é uma das maiores violências feita à classe dos professores que teimam em não pecar.
Um abraço para os dois.
Que das nossas salas nunca deixemos que o texto se ausente!
Saudades, até eu sei que a Isabel vai levar uma frase, um texto, uma promessa de redenção aos alunos. Até eu sei que vocês, pelo que escrevem e são, não vão sucumbir ao cinismo instaurado. Até eu sei que apesar da tristeza e cheias de nostalgia do absoluto, o vão levar no sorriso e no trabalho.
ResponderEliminarBeijinhos para ambas
Saudades,
ResponderEliminarlevarei texto aos alunos. O que quer que eu seja é texto. Eu sou texto. Nada mais do que isso. Só sei falar de textos e ler textos. Por isso, quando entro na escola e me obrigam ao trapézio mental do "vivido" e da história de vida do aluno...e penso estão a privar estas pessoas do que é grande e pode tornar a vida deles bela...rebenta-se-me o coração. Literalmente. Sinto a bolha a formar-se e a descontrolar-se. As almas não se elevam e enlevam sem texto. Atenção texto não é só "texto". Assumo aqui a minha filiação Ricoeuriana de que não me envergonho nem um pedacinho.
Claro que o resto vem do encontro com eles e com a felicidade que é termos tantos rostos à espera de nós e nós deles, porque, de facto, na "Terra foram esperados". Por quem lhes quer bem. Mas às vezes, nestes instantes de luta com o absurdo dos que nos arrastam para o acidental da questão, tenho vontade de desistir. Fazer bolos, sei lá...e confesso que cada início antes dos alunos demora mais a passar e eu e os outros devemos estar cada vez mais insuportáveis, mas depois há ainda a perda de sentido das nossas disciplinas em nome da sacrossanta ciência da educação...e tanto conceito esvaziado de intuição empírica, só me lembra Kant e o vazio dos conceitos sem experiência. Enfim...com um pouco de sorte talvez hoje as grelhas magníficas, destituídas de conhecimento dos alunos tenham terminado no meu grupo. Talvez...há sempre alguém em estado de delírio pós Bloomiano com competências...até, porque lá está, já se esqueceram que há livros para ler. Dias sucessivos destes destroem a verdadeira Isabel, atiram-na para um cemitério onde andam vivos que não se sabem mortos.
Desculpe mas estou exaurida e farta!
E por isso vou tentar ler.
Mas Era Uma vez...
obrigada pela confiança no meu e nosso trabalho. bem precisamos dela...tanto e tanto. E lá viverei os desafios com toda a força boa que ainda exista em mim.
E Anita,
ResponderEliminarestou tão cansada que me esqueci de dizer que o poema é demasiado belo para que possa aceitar merecê-lo. Mas é um grande poema e a generosidade em me leres deixa-me grata e espiritualmente mais forte, nestes tempos dificéis. Obrigada
Querida amiga Isabel,
ResponderEliminarNo dia em que deixar de poder-querer lê-la é porque deixei de o fazer em relação a tudo o resto.
Abraço terno.