Quando o rosto do poeta se pinta de verde, é porque aconteceu a Primavera no céu e as planícies celestes auguram boas colheitas para os vates da Terra. Famintos, pintam o rosto com os reflexos dos arrozais divinos: os poetas têm no rosto as cores do que olham e do que chamam. Olhos e boca abertos para receber os versos verdes, as hastes frágeis com que o vento faz largar os grãos do arroz dos deuses. O rosto do poeta é um campo verde, um arrozal intenso, um arrozal extenso, grãos reunidos à volta do olhar, à volta dos lábios entreabertos. Rosto de arrozal, chão de grãos divinos, o poeta é o mondador do arroz espiritual.
Na cabeça do poeta, como no corpo do bailarino, não há ordem. Não há direcção. Há música. Entregues ao ritmo, vão os poetas em busca do indireccionado. Porque o poema vem a caminho, mas não traz direcção. É preciso, por isso, olhar e chamar para todos os lados. O poeta não sabe o que ouve, nem de onde ouve. O silêncio e o longínquo não têm lugar, mas vêm do alto: de grãos de silêncio, de grãos de lonjura se compõe o poema.
No corpo do poeta um geómetra enlouquecido só consegue linhas e pontos em fuga. No corpo do poeta mora um geómetra dado a traçar irregularidades: os círculos saem inacabados, as linhas quebram-se antes do fim, os movimentos interrompem-se, os segmentos tornam-se rectas, o ponto não estabiliza, a linha desfaz-se, foge, a irrequietude da forma dilacera o geómetra mas revela o poeta como caosmos.
Quando o corpo do poeta se pinta de azul, é porque o céu se desbotou sobre os corpos da Terra. Nus, os poetas, como mendigos, recebem a cor que o divino doa a quem elege. O poeta recebe a cor, mas o tom no poeta é um som. O som uma profecia intraduzível. O som indecifrável é presença do absoluto. O poeta deixa-se ficar, queda-se, para que os tons e sons se entrelacem na relação com os elementos à volta, e em volta da terra e do céu, de homens e deuses, o poema enlace paisagem e ritmo, se componha paisagem-ritmo.
Depois o poeta senta-se à espera da voz que o cante e sonha as noites das paisagens seguintes. Porque um poema é um sonho que repousa numa paisagem cantável. Num arrozal permanente em que o coro, a corografia, é feita por pássaros nas mãos orquestrais do vento. Uma paisagem permeável ao vento e aos sopros é uma paisagem poética. O poeta espera-a em indigência porque só uma paisagem solar ou lunar preenche a sua necessidade de excesso. O poeta não precisa de sobreviver, mas de saber viver. Só as paisagens musicais têm os grãos que nutrem a fome do espírito. Grãos de arroz e grãos com tons e sons. Grãos de trigo num campo com corvos, grãos guardados e perdidos na falésia escarpada de cré onde as palavras são grãos de areia no baile inconstante do vento e do tempo. O poeta sabe que é a voz de outrora que reúne e afasta os grãos que revelam a paisagem arquetípica de que a alma tem nostalgia. O poema traz essa morada. O leitor terá que procurá-la com a alma liberta dos lugares e das posições. Também a sua cabeça se deve desprender do que a prende, a fixa aos lugares e aos tropos. A leitura nada mais é do que a escuta das paisagens invisíveis e sibilantes que atravessam e se configuram musicalmente na alma. Sabe que lê aquele que escuta e se faz ouvir a si com o texto. Ler é sobretudo cantar. É por isso que, em torno do livro, nasce o ensaio, a tentativa de acertar com a voz que canta. E escrever uma corografia: fazer a grafia das vozes em coro. Oiço com atenção. E sei a paisagem que são em mim. Cantografia.
Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
Escreves em letra miudinha os sons maiúsculos da finalidade última de todas as coisas; pois os animais, demónios, fantasmas e deuses da minha cosmogonia, cega e caótica, são ante passados e ante futuros desse poeta que se revela nas pinceladas de van Gogh, Caspar David Friedrich, de Chagall e de tantos outros. Só quem bebe a sede sabe encontrar as fontes que a extinguem. Só quem come a fome conhece as searas da abundância. Que o teu discernimento nos abra os olhos para a luz indireccionada ou para o mais profundo breu, pois tanto um como outro são cegos de tanto amar e esquecem a forma por tudo ( sem excepção) bem querer. Agradeço a Jackson Pollock, bêbado e pintor, os seus ensinamentos. A ti, Isabel, agradeço a Cantografia.
ResponderEliminarErrata: extingue, em vez de extinguem.
ResponderEliminarIsabel
ResponderEliminarAgora, a palavra sopra em todas direcções e não acerta na boca do poeta. De olhos e boca abertos, o poeta mudo só vê o coração branco do mundo. As cores, os sons, os tons e as palavras giram à roda desse coração e não o definem. Andam perdidas do poeta, as palavras, mergulhadas num abismo, numa espiral de beleza e sentimento que o esmaga. O geómatra fecha a boca do poeta, instala um canto de silêncio. Para que a plenitude da escuta não confunda as vozes, o poeta agradece a ausência de palavras na sua boca. Tantos os grãos do arrozal do céu! Temo não ter lágrimas suficientes para o vaso onde o poeta deixou a cabeça...
Agradeço o vaso que aqui deixou, tenho pelo jardineiro um grande afecto.
Um beijo de Saudades