domingo, 27 de julho de 2008

Uma carta e dois poemas encontrados nos Jardins de Cupido


A Deusa do Destino
“As orquídeas de Outono e o levístico
Despontam em tufos ao pé da sala.
As suas folhas verdes e caules brancos
Lançam-me os seus perfumes em ondas.
Todo o homem, seguramente, tem o seu grande amor:
Por que está a deusa triste e só?
A orquídea de Outono, que esplendor!
Verde é a folha, violeta o caule.
A sala fervilha de belos rapazes
Mas de súbito para mim ela dirige o seu olhar:
Chegou sem uma palavra, partiu sem um adeus:
Um tornado é a sua montada, uma nuvem o seu pendão.

Que desgosto se compara ao de uma partida
Que felicidade à de um primeiro amor?
Vestida de lótus, cinta de basilisco
Ela chega de repente e num instante se vai.
À noite mora no firmamento.
Que esperais, Deusa, na berma de uma nuvem?
Pudesse eu convosco banhar-me no Lago Celeste
Secar numa encosta ao sol os vossos cabelos!
Espero a minha bem-amada mas ela não vem!
Ao vento desolado, canto em alta voz.
Sob um dossel de penas de pavão, com um estandarte de penas de pica-peixe
Ela sobe aos Nove-Céus, toma em mão os cometas.
Erguendo a sua longa espada para socorrer novos e velhos
Só a deusa será, para todos, justa.”
Qu Yuan (Séc. IV-III a. C.)


Cânticos Taoistas
“Maldito seja o saber e o estudo –
Meu espírito vagabundo do silêncio!

Maldito seja o saber e o estudo –
Meu espírito vagabundo do silêncio.
Se o procurarmos sempre
Nunca mais o acharemos.

Um regato para lançar a minha linha
E desfruto de todo um reino.
Cabelos despenteados, arrebato o meu cântico
Que os homens retomam nos quatro cantos do mundo.
Qual é o refrão?
- Meu espírito vagabundo do silêncio!

Um alaúde e um poema chegam para a minha felicidade.
Vaguear pela lonjura é um tesouro
Cheio do Caminho que percorro sozinho
Em direcção ao fim do saber e do eu.

Tranquilo e sem cuidados
Para quê procurar outrem?
Sou um habitante das montanhas mágicas
Que rejubila no pensamento e alimenta o seu espírito.”
Xi Kang (223-263)


Para o P. G.
Uma certa Princesa da Distância, perdida na bruma da sua janela de outrora, confessa a um guerreiro de outras eras, a um companheiro de fogo com quem bebeu chá no Pavilhão da Chuva:
nada mais somos do que vozes num poema. E, nada mais, é tanto. Nada mais podemos desejar do que esse ritmo de uma voz que lendo alto nos reúne onde apenas nos encontramos.
O poema. Mas só aí. De resto, na paisagem nos encontramos: vendo e pensando. Simbolizando o que já nasceu como sinal da outra parte perdida.
Com a voz cheia de silêncio e canto, compondo hinos, ela nada mais é do que uma vagabunda presença que errando procura o som, os sopros que a dissolvam. Até lá mora na poesia e alimenta-se do mel da tua. Envia-te esta de que falaram e que ela deixou inscrita no coração quando no teu pousou a sua mão.
E ouve as tuas lágrimas e segue-as. Elas são da fonte onde na infância, antes do tempo, as vossas bocas saciaram a sede. Moraram junto da origem.
Enlaça-te nos sopros e nunca a perderás. Não tentes, guerreiro amigo, prendê-la ao que ela não é e ao reino que abandonou.
Ela canta-te e afaga-te com as sombras mágicas das montanhas. Mesmo quando desce ao Mar ela logo sobe. Só na mais alta montanha está escondido o jardim de Diotima. Só na mais alta montanha moram os deuses e Hölderlin. Só lá chegam os eremitas como a Princesa da Distância. Foste tu que lhe deste refúgio nesse nome.
Lá, por ser distância, ela reúne na sua mesa os que com ela falam do amor e com todos cuida dos Jardins de Cupido. Todas as manhãs entreabre a porta e espera os que, sem a terem procurado a encontram, os que dela se tendo desencontrado, a reencontram. Porque ela vive nos Jardins da Memória.
Cantando poesia e lendo-a, mais facilmente farás o caminho de regresso. Mas não te apresses. Ela é quase tão lenta como o que não é do tempo. E gosta muito de ti.

5 comentários:

  1. Romantismo no seu melhor!Amei.

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  2. Isabel,

    Segui o esplendor da orquídea de Outono que desponta em perfumes na sala... Segui os cânticos, mas sei que o espírito errante do silêncio o encontramos na verdadeira escuta... «um alaúde e um poema» e «vaguear pela lonjura» parecem-me sapientíssimas aspirações também para a minha pobre alma... «Nada mais somos do que vozes num poema» que vamos lendo a várias vozes....Um poema contínuo, que segue o ritmo da respiração das montanhas. Um poema como uma Serpente que ultrapassa e chega além de Deus e, tangente a tudo, tudo enolve nos olhos que não se deixam olhar... Sentada nesta cadeira, pensando nas suas palavras, qualquer coisa se aligeirou em mim. Quase toquei uma presença antiquíssima e próxima e benfazeja, uma memória de rio, o seu correr para dentro da alma. Subiu-me uma vontade de nada que me habitou em plenitude.

    Agradeço muito isso.

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  3. Tamborim,

    agradeço eu. É muito bom quando os outros recebem a verdade que em dado momento fomos capazes. Não sabe o quanato foi importante ter recebido o que escrevi, da forma como escrevi. Um sorriso e uma lágrima.

    Saudades,

    Que dizer-lhe?
    O que é óbvio: gosto muito de a ter como leitora, como conversadora com o meu mundo. E é tanto, e é tudo e é muito. E fico ainda mais pobre por temer que as palavras não dêem conta disso, que sinto.

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  4. A pintura é deslumbrante, Isabel, e agradeço-te especialmente A Deusa do Destino. Ando com poucas palavras pelos campos de cardos-algodão. Setembro já me pica, a espada rejubila-me, e as orquídeas rosam, muito.

    Abraço-te.

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  5. Também te abraço forte e preciso de Setembro. Mas antes preciso de Agosto. Preciso de repousar e do cheiro das tuas rosas que chegam sempre ao que sou.

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