"Deverás saber que, nesta vida, nunca uma pessoa se abandonou assim tanto, que não tenha achado que se devia abandonar ainda mais. Existem poucas pessoas que respeitam isso correctamente e nisso são constantes. É uma troca de valor igual e uma justa transacção: tanto quanto tu saíres de todas as coisas, tanto quanto, nem mais nem menos, entrará Deus com tudo o que é Seu, contanto que tu te tenhas inteiramente despojado do que é teu. Começa pois por aí, e expende nisso tudo o que conseguires arranjar. Aí encontrarás verdadeira paz e em mais lado nenhum.
As pessoas não necessitavam de reflectir tanto sobre o que deveriam fazer; elas deveriam, pelo contrário, reflectir sobre aquilo que elas são. Ora, se as pessoas e os seus modos fossem bons, então as suas obras poderiam refulgir limpidamente. Se tu fores justo, então as tuas obras também serão justas. Não se pode pensar a santidade com fundamento numa acção; deve-se, pelo contrário, fundamentar a santidade em um ser, pois as obras não nos santificam, senão que nós devemos santificar as obras. Por muito santas que as obras possam ser, elas não nos santificarão de modo algum, porquanto elas sejam obras, mas: tanto quanto nós formos santos e possuirmos ser, assim santificaremos todas as nossas obras, sejam elas comer, dormir, despertar ou seja o que for. Aqueles cujo ser não é grande, façam que obras fizerem, daí nada sairá. Reconhece, por conseguinte, que se deve empregar toda a determinação em ser bom, - e não tanto naquilo que se faz ou no modo de as coisas serem, senão em qual há-de ser o fundamento das obras" - Mestre Eckhart, Conversações Espirituais, 4, in Mestre Eckhart, O Abismo Eterno, antologia de tratados e sermões escolhidos por Paulo Borges e Jorge Telles de Menezes, prefácios de Paulo Borges e Jorge Telles de Menezes, tradução do alemão de Jorge Telles de Menezes, Lisboa, Mundos Paralelos, 2008 (no prelo).
Bem é um bela e comovedora ideia. Deve ser porque não sou boa que ela estremece em mim como um eco nostálgico e forte, como uma melodia que não sou capaz de cantar sem desafinar. O bem e os bons sempre me enterneceram a alma. É por isso que gosto das "Ondas de Paixão" e do "Idiota". Este é mesmo o meu livro dos livros. O bem, os bons...os livros por abrir, as portas das férias...e poder abandonar-me. Finalmente, conhecer o abandono e alguma libertação. Que nada ,dentro e fora de mim, me prive do rumar à deriva para um hino e um imo. O que tiver de ser. Obrigada pelo excerto tão doce para a alma faminta de além daqui. Também mereço essa bondade, que outros sejam capazes de me deixar partir para o não-lugar. Sejam, como diz a Llansol capazes dessa bondade.
ResponderEliminarP.S. E comer queijadas em vez de fazer queixa(das)...Freud amaria este acto falhado. Risos
Caríssimo, essa coisa do ego é tramada. Há uma fundura em nós de tanto egotismo represo que é difícil de debelar. O que é muito triste.
ResponderEliminarMas este texto com que nos presenteias faz-me pensar na nossa sociedade tecnológica na qual parece que os processos e os dispositivos que os estruturam têm uma consistência ôntica (e ontológica) que parece independente dum agir humano, intencional e eticamente orientado. A própria economia é uma boa prova disso mesmo, já que hoje é encarada como um conjunto de estruturas que superintendem a organização da vida da sociedade, em vez de lhe estarem subordinadas. A velha questão da política e da mudança da sociedade...
Há por aí, também, muita coisa a abandonar. Mas eu penso que a questão do egotismo também desemboca daí, uma vez que os homens da sociedade de consumo vivem cada vez mais vidas contabilizáveis e isso é terrível. Esse totalitarismo não possui bondade e, talvez, não seja capaz de corporizar o mal, é um limbo em termos éticos e, por isso, é tão irredutível.
Bem, mas já estou a exorbitar...
:) Abraço!
Excelente texto, que realmente da muito qu pensar. Principalmente em relacao as intencoes que estao por detras cada acto que fazemos, principalmente os supostamente mais "altruistas". No entanto, ha uma questao que fica pendente: O que significa ser "bom"? Quando sabemos que estamos a ser "bons", ou que nos estamos a "esvaziar"? Tenho uma certa desconfianca em relacao as pessoas que julgam ser "boas" ou estarem "em vias de se livrarem do ego". As vezes tenho a impressao que, quanto mais as pessoas julgam estar "no bom caminho", no caminho da dissolucao do ego e do esvaziamento de si, mais longe se encontram desse estado. Ha certas formas de viver a "espiritualidade" que acabem por ser grandes armadilhas que enraizam e calcificam ainda mais o ego, sob a ilusao de "santidade" ou "iluminacao". Algumas dicas?
ResponderEliminarEu não quero meter a minha foice em seara alheia (e que seara!), mas, Ana, eu cá por mim acho que não tens que te preocupar com isso. Eu olhei-te nos olhos, vi a forma intensa como te entregas às tuas causas, acho que já estás "lá". Continua que, e falo por mim, és um farol. Outros têm outras experiências. Mas a que te é dada é a mais indicada para ti. Caso contrário não te seria dada. Se achas que a tua via é difícil e parece que lhe falta algo, talvez muito, ou quase tudo, junta-te ao clube. Até te faço um cartão de sócio. ;)
ResponderEliminarCreio que aqui ser bom tem um sentido meta-moral: não se trata de dever ser, ou de ser a seus próprios olhos isto ou aquilo, mas de ser no abandono de si a Isso que se designa Deus e que pode ser visto como a inefável plenitude da Vida... Seja como for, Eckhart indica um sinal muito concreto de que se está no bom caminho: a paz, a "verdadeira paz". Só ela santifica o agir e o simples estar, o comer, dormir, etc.
ResponderEliminarCaríssimo Paulo, é isso mesmo. A paz. Só isso é tudo.
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