domingo, 1 de junho de 2008

Notas sobre António Quadros (a partir da leitura da sua obra)

(...) O homem concreto é hoje um homem desconhecido. Predomina o especialismo e triunfa o homem abstracto. Triunfa o novo homem bárbaro, como já anunciara José Ortega y Gasset, ou o homem sem aura, no sentido benjaminiano, o homem incapaz, inapto, porque sendo apenas um profissional, especializado na actividade profissional que exerce, não tem ou não consegue ter, ideias para além do seu ofício. A especialização e os efeitos perniciosos da tecnologia no homem, a absorção de tudo o que é estrangeiro, sobretudo americano, contribuem para a degradação da experiência e para a perda de sentido. A sociedade é hoje recreativa. «A grande indústria está a infantilizar a sociedade. As crianças comportam-se como adultos, e os adultos querem divertir-se como crianças. A bem do consumo.»[1] Essa perda de sentido, onde o homem sem ideais é reduzido ao geral e ao artificial, sem consciência cultural, conduz-nos para uma sociedade onde predomina a produção, onde triunfa a igualdade, o «homem economicus», o homem sem ideia de espaço e de tempo, e onde o “ter” e não o “ser” nos surge quase como a única característica existencial que nos une, como o único elemento de partilha, de conversa e de encontro e como o único sinal visível, ou verosímil, de existência de cada um de nós. Proliferam os computadores e multiplicam-se as televisões, os telemóveis e todo o tipo de tecnologias que ao se interporem entre as pessoas, ao invés de as aproximarem as afastam, e o resultado é a simplificação generalizada, a formatação dos conhecimentos e o recuo do sentido no pensamento.
O homem concreto é hoje um homem desconhecido. Desconhecido porque se ignora. Desconhecido porque não se lhe não concede o tempo necessário para se conhecer e emergir. Porque não se lhe admite a diferença. Porque se recriminam as suas questões, o seu lado subjectivo: as suas leituras, os seus estudos, as suas perguntas mais profundas, em suma, o seu lado invisível e a sua diferença interior: «(…) e a cortina deste esquecimento desce sobre nós (…) começamos a moldar as palavras, as formas, as cores, as ideias, numa contradição flagrante entre actuar e ser.»[2] E o que fica do que somos? Do nosso lado verdadeiro, sincero e profundo nada conhecemos. Do nosso plano individual, nacional e universal nada alcançamos. De nós mesmos nada sabemos. E o jovem pensador de hoje? O poeta e o homem de espírito? Enquanto criador, atento às profundidades existenciais, mas também voltado para o real que o envolve, perdido ele próprio num movimento de massas uniformizado, e por isso limitado, se quisermos, angustiado, à procura de si mesmo, quando tudo lhe indica o oposto que se lhe opõe, que se lhe recusa, que se lhe foge. (...)

[1] Andrade, Rui, A sociedade Recreativa, Revista Actual, Expresso, 29 de Dezembro de 07
[2] Quadros, António, A angústia do nosso tempo e a crise da universidade, Lisboa, Cidade Nova, 1956, p. 23

4 comentários:

  1. Tanta verdade em tudo o que diz. Tanta perspectiva por onde e para onde também inclino o olhar de que sou capaz...
    Por isso penso que só o Sonho, só outro olhar me salva deste mundo e desta realidade que também me inclui, a que também pertenço e sou. E espero a voz ininterrupta dos poetas. Dos poetas e dos poetas...

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  2. O sonho comanda a vida:-)!

    Se não fosse isso já estariamos todos doidos ...

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  3. Se não fôssemos todos doidos não julgávamos estar vivos...

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  4. Parece-me que não há maneira de sermos iguais e que o cerne da questão do “homem desconhecido” (o que se ignora) é não se aguentar diferente dos outros, isto é, é não se aguentar sozinho. E muitos que não se aguentam sozinhos, juntam-se e formam um "rebanho" e o rebanho é muito fácil de manipular. Outra forma de não se aguentar sozinho é aquele que grita pela diferença, que exige! dos outros o reconhecimento da diferença. Acaba por cair num sentimento de marginalidade. Mas onde há integridade (integração) não há marginalidade nem a apologia da diferença e muito menos a necessidade de igualdade. Bom, mas tudo isto é apenas uma nuance, incompleta. Há outras. E diferentes.

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