quarta-feira, 28 de maio de 2008

Cenas do quotidiano

Rossana deita-se ao comprido. O seu pêlo é um entrançado branco por onde os fios de luz se intensificam. É uma espécie de primeiro cão do mundo. Olho para ela e penso que ela atravessou todas as idades, todas as eras, todas as casas dos homens. O crepúsculo é tal e qual como se estivéssemos no Outono mais denso, os tons amenos e belos, de uma tranquilidade lúcida, pura. Mas há uma luz. Uma luz intensa mas velada, uma atmosfera liquefeita, com a água solta, liberta do seu âmbito, intuitiva. A Rossana tem a pequena bola cor de laranja junto ao focinho, entre as patas. Está ali como no início de tudo. Mexo-me na cadeira, há um som. Rossana olha-me, de repente ela. Estou sentado no quintal, leio. É como se as palavras fossem o movimento de Deus, uno e distante. Reparo que o charro se apagou. É necessário acender outro fósforo. Meus pais não imaginam que faço isto. É por isso que o faço agora. Acendo o fósforo. Eis que a Rossana olha para mim e é ela mesma e todos os cães ao mesmo tempo, a dupla face do signo. Os animais são os seus nomes por inteiro, vivem na combustão inicial do fogo, trazem a translúcida quietação de tudo. Recosto-me, paro de ler. O fumo eleva-se. Penso que os meus amigos estão no vórtice das suas vidas, tal como eu. Curioso como nunca reparo nas flores do quintal. Estão em vasos que alguém, um dia, moldou. As flores são a mais delicada manifestação de vida. E ao mesmo tempo, a mais fortemente fundada no espaço. Irremovíveis, as suas raízes fundem-se com a terra. Agora que penso nisso, as flores são também o ser vivo mais propenso à levitação. Não o voo furtivo dos pássaros, não, a fluidez mais tensa do vento, a dança demiúrgica do estar sendo. A impossibilidade de repouso. Os pássaros têm os seus ramos de árvore, os seus cabos eléctricos onde abrigar. As flores vivem no eterno mover do mundo, etéreas e telúricas, sem síntese, só paradoxo. A Rossana pressente um barulho lá fora. Levanta-se. O charro apagou-se de novo.

4 comentários:

  1. A história do meu cão é simples. M. chegou com as purpurinas, os laços e o presépio. Chegou mínimo, bolinha de pêlo.Foi lamber com a sua língua cor-de-rosa os pezinhos cor-de-rosa do menino. Pareceu-me que aquele terá movido um dedito... Nunca cheguei a ter disso a certeza. A verdade é que M. cresceu, conheceu os lagos, os portões, os jardins e as "damas". O seu ladrar é forte, de serra da Estrela, guardião do portão das sete portas do Barba Azul. Conhecedor de várias linguagens que usa para comunicar, o meu cão também é único. Passo-lhe a mão pelo pêlo cor de mel e dele se desprende calor fraterno. É o guardião da paz. às vezes sobe o sofá e lambe-me o rosto, como agora, que não me deixa acabar de contar...
    Às vezes, senta-se na cadeira de onde alguém se levanta e fica a olhar do alto a sua fidelidade canina. Não há som que lhe falhe.Os seus olhos castanhos vêem a cor do meu humor e reagem a ele.
    Não sei se ele voa, porque ainda não o vi voar. Mas a imagem dele com as patas levantadas a vencer a gravidade é tão graciosa, que ficou registada na minha mente. É um cão muito novo. Quando envelhecer, vou-lhe contar esta proeza. Acho que vai ter saudades de voar... mas as flores vão agradecer. Isto se ele alguma vez deixar de se sentir atraído por elas. «Quieto M!». No Natal seguinte à sua chegada, perdeu a "inocência" e levou o menino-jesus para o pátio. Acho que brincaram um bocado.
    Tantas histórias do meu cão.
    Um abraço

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  2. Escreves muito bem e tens aqui um texto de bom tamanho para um bolg desde género.

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  3. Este texto, João, ficará sempre bem onde houver beleza, silêncio e poética. Não importa, onde...importa o quem e para quem. Como diz a Gabriela, "não importa o meu nome, importa quem chama". Que te chamem sempre os instantes e os únicos. Para sempre celebrares os nomes.
    Um sorriso muito grande

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  4. Este texto, João, ficará sempre bem onde houver beleza, silêncio e poética. Não importa, onde...importa o quem e para quem. Como diz a Gabriela, "não importa o meu nome, importa quem chama". Que te chamem sempre os instantes e os únicos. Para sempre celebrares os nomes.
    Um sorriso muito grande

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