"[...] o florescimento sem precedentes da música ocidental apenas se pode compreender a partir da necessidade de produzir um sucedâneo de amplitude cultural convincente para o deserto perdido e para o encerrado refúgio monástico. [...] Nos últimos cem anos, a música estabeleceu-se como o mediador universal através do qual a época sem deserto procura cobrir as suas necessidades de fuga do mundo. O ataque do som artificial aos ruídos exteriores do mundo atingiu neste século uma intensidade sem par em toda a história da espécie. Mas, ao contrário do deserto, que ajudava a libertar o interior, a musicalização mediática de todos os espaços submerge os últimos vácuos de interioridade livre: esquecimento do Ser em todos os altifalantes, ausência banal do mundo em todos os lares, a toda a hora do dia. Desde que há auriculares, o princípio de desconexão do mundo progride no consumo moderno da música também ao nível do aparelho" - Peter Sloterdijck, O Estranhamento do Mundo, Lisboa, Relógio d'Água, 2008, p.72.
Porque estamos sempre a ouvir música, a ver televisão, a viajar na net, a ler, escrever, telefonar, a receber e enviar mails, msns, smss ? Porque passamos tanto tempo neste blogue ? Para fugir de quê ? Para não escutar o quê ? As vozes dos deuses e do silêncio ? A sinfonia do mundo ? Para esquecer e povoar o deserto que somos, que tudo é ? Para nos escondermos de Deus ou do sem nome ? Para não ficarmos nus e despidos de experiências, transidos de luz, despertos ?
Andamos sempre a ouvir música para ensurdecermos para os gritos do mundo e os murmúrios do abismo.
ResponderEliminarEu não estou sempre a ouvir música artificial, reservo-a para raros momentos especiais; nunca vejo televisão, não vou ao cimena há meses, falo o menos possível ao telemóvel, não uso o messenger.
ResponderEliminarHá seis meses que passo a maior parte do dia sozinho numa casa isolada, ouço sempre os pássaros e o vento, são minha música, leio bastante mas não escrevo o quanto deveria e gostaria. Decidi fazer um esforço para passar o menos tempo possível neste blogue, senão acaba por se tornar num vício. (e acabei de violar a minha decisão...)
Chegará o dia em que pela surdez de tanto ruído externo nos reste apenas a música in-e-terna da alma.
ResponderEliminarHá pouco tempo li que os nervos auditivos estão em contacto com toda a cablagem nervosa que vai da base do crânio para todo o corpo. Isso não acontecerá, por exemplo, com os nervos ópticos. Isto pode permitir pensar que o nosso corpo é uma caixa de ressonância, sensível à variadíssima gama ondulatória que compõe o espectro sonoro.
ResponderEliminarTalvez necessitemos mais do silêncio (mesmo falando fisicamente) do que pensamos.
E, de facto, hoje parece que vivemos sob o influxo dum horror vacui que nos mergulha numa sobre-estimulação sensorial tremenda.
Do que teremos medo?
Talvez de nos descobrirmos sem fala e sem eco: o que teria acontecido se Narciso e Eco se tivessem encontrado um ao outro (um no outro)?
Há, pois, que tornar imundo o mundo, essa limpidez que nos cega e nos enleia...
;)
Como � que se torna imundo o mundo ?
ResponderEliminarChafurdando-nos na pocilga do nosso proprio ser.
ResponderEliminarOuvimos música para não ouvir a que somos.
ResponderEliminarCorrijo: Ouvimos música para não escutar a que somos.
ResponderEliminarSó quem não entende a Música na sua plenitude interior pode fazer afirmações semelhantes!!
ResponderEliminarLer conceitos destes vindos de 'mentes espiritualizadas' seria impensável se não tivesse constatado :(
Lune
... gostava de saber se este blogue tem alguma coisa a ver com o blogue
http://quetzalcoatl.oldblogs.sapo.pt/
Depende de que música se fala... Da que há nas coisas ou da que se produz ? Esta, nos seus melhores momentos, pode levar-nos à música das coisas, mas também nos pode prender no apego a paraísos construídos, contingentes e paralelos...
ResponderEliminar"Uma sinfonia de Beethoven deveria poder transfigurar o mundo" - Nicolai Berdiaev (citação de memória).
ResponderEliminarMas não o faz. A arte sempre fracassa.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarMais que de música, que de qualquer outra forma de arte ou de entretenimento, parece-me que se fala de obsessão compulsiva. Podíamos estar a falar de dar lustro aos garfos ou de lavar as mãos milhões de vezes antes de sair.
ResponderEliminarSendo eu uma utilizadora de auriculares, a mim também me irrita que me impinjam música em todos os cafés, todas as esplanadas, nas ruas durante a época natalícia e até nas estações de metro, aliás, é mesmo nessas alturas que, estando sozinha, enfio os auriculares nos ouvidos e escolho a alienação que mais me convém. Assim sempre posso ir inspirando a dor dos outros e expirando felicidade para todos.
Fazer parte de um rebanho cada vez mais numeroso, da massificação cultural é doloroso. Por vezes é mesmo a ouvir NO future... nooo fuuutuure dos Sex pistols que eu acordo para os caminhos que percorro.
Hoje estou triste ! Não consigo falar de música, nem dar música ...
ResponderEliminarVou escutando a vossa música ...
"A música ocidental dos últimos cem anos" (?) mas que "música"? mistura-se tudo no mesmo saco!
ResponderEliminarAlienação é esta sociedade plutocrática que aniquila o indivíduo, que se serve dos media para a deturpação dos sentidos,mostrar e fazer ouvir o que mais lhe é conveniente. Esquece-se o verdadeiro sentido e significado de Música, que tem sido possível para muitos compositores destes últimos cem anos! O escutar...O sentido primordial da Música, o religar o Ser à Natureza, ao pulsar interior do Cor.
Ainda é possível a liberdade de escolha do que se faz,ouve,diz,lê e escreve. O mesmo não se passa com o "trabalho" que não deixa opção! e o que resta para a criatividade?
E de mim, ninguém fala? Se não fosse eu, ninguém saberia o que é a música, nem a poesia, nem a arte nem a criatividade. Os mitos servem para alguma coisa, não são só para enfeitar!
ResponderEliminar