sexta-feira, 25 de abril de 2008

A Leitora do Silêncio e da Música

Quando alguém a olhava depois dos estados musicais, de ter dançado e experimentado a embriagante melodia do mundo, M., pedia sempre os poetas mais incomunicáveis. A poesia mais nua e despida de sentido. A poesia que ela repetia para colocar entre os actos.
Vinha da escola e espalhava os textos na relva, os muros mexiam com o frémito da hera e começava a tarefa de os recolher na alma, lê-los. Então lançava sobre mim um pedido silencioso com o livro aberto. Eu lia um poema de Celan. Ela escutava com os olhos fechados e no fim era eu quem fechava os meus. Depois, na imperceptível passagem de uns gestos para os outros e quando já se assinalavam os erros, se escreviam nas margens notas, e antes que a noite fechasse a abertura da luz sobre as páginas, ela aproximava-se de novo e cantava:
A hora que liberta do gelo o teu olhar,
Te faz arregaçar a tua sombra
E arranca aos sinos o seu silêncio quando danças

Agarrava-a com entusiasmo. Muito, e rodopiávamos até ficarmos zonzas. Gritávamos e a hera agitava-se com o movimento dos corpos e da voz. Ela confessava um segredo ao meu ouvido. Um segredo que era, como no poema de onde cantava o refrão, uma luva do silêncio que me lançava aos pés do coração. Depois chorava porque sabia que um segredo é um modo de entregar um modo singular de ser que poderia não ter sido sem aquele sopro rítmico atirado para dentro do meu silêncio. Olhava-a com intensidade e talvez esse fosse o gesto, de todos o mais esperado, aquele que me iluminava e levantava a sombra. Então, ela desenhava com os dedos na minha face o segredo. Era esse gesto que continha a música que dançava quando ela tocava na minha pele. Quando aparecia a primeira estrela, ou ela se exprimia brilhando no nosso olhar, ela deixava cair a cabeça no meu ombro e dizia em hebraico, paz.
Antes de adormecer procurava nos livros espalhados qualquer coisa de raro entre-as-folhas. Perguntávamos o que era, quem era, a coisa, a pessoa, a palavra. Mas não era nada. Procurava com mais avidez. As mãos mexiam-se mais rapidamente. Insistíamos: o que era, quem era, a coisa, a pessoa, a palavra. Não dizia nada. Talvez a irritássemos, feríssemos. Às vezes corriam lágrimas. Então corria para a cama e chorava soluçantemente. Esperávamos que parasse. M., então, dizia: hoje o movimento de ontem não veio. Não se escondeu entre as folhas dos meus livros, destes livros. Não estava lá, mandou outro. Era outro. Amanhã compras outros para ver se o encontro? Como sabes que era outro, – sim procuramos o movimento de ontem noutros livros –, como sabes que era outro? – Perguntávamos e insistíamos. Era outro porque não o ouvi da mesma maneira. - Respondia. Então cantava eu o refrão de um poema que ela sabia de cor e dizia com os lábios sem som:
Só a noite deves deixar falar diante dos olhos:
Só a folha que ouve onde ainda há vento;
Só na gaiola do pássaro

Adormecia e, sem outro desejo explícito na alma, tentávamos desenhar o Anjo da História. Havia sempre o do Klee para atrapalhar a espontaneidade, mas desenhar era a única oração com que nos conseguíamos despedir daquele lugar. Como se só nas folhas dos livros se encontrasse o vento com que poderíamos salvar o Anjo da sua impotência que é como sabemos, de Aristóteles a Agamben, um modo do ser não-ser. E, de súbito atravessados por uma estranha percepção sem contornos, uma sensação do imperceptível aos sentidos, levava-nos à descoberta de que só o acto de ler continha esse movimento de salvação do mundo e dos que sentem o seu coração reduzido, pela injustiça dos homens sobre os homens, ao peso da rocha de Sísifo. E, procurávamos os livros e criámos a comunidade de leitores daquela casa. E todos, não só M., mas os outros, abriam e fechavam livros. Uns mais depressa, outros mais devagar, uns olhando atentamente as letras e os seus traços, em todas as línguas e lendo etimologicamente, outros lendo os sons e alto. Em tom elevado e colocando a voz para descer à origem do poema e do rumor inicial. Outros, em silêncio, vendo para além do sonoro ou não vendo senão a sua própria cegueira e outros ainda juntando os livros num só livro, criando as passagens e colando as citações de uns nos outros. O trabalho era infindável e por vezes desesperávamos de cansaço e de beleza. Quando um veio de desistência se manifestava na testa e nas mãos, na precipitação inesperada do sono, M. , dançando e cantando, serpenteava pela casa:
Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
A tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
As tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
As tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
(…)
As tuas faces, campo de armas da madrugada;
Os teus lábios, hóspedes tardios;
Os teus ombros, estátua do esquecimento;
E, percebendo que todos os livros são o retrato de uma sombra que ainda sopra, ler o sopro de uma sombra que hospedamos nos lábios, abríamos - endireitando os ombros e as costas para sacudir o esquecimento que o cansaço desculpa - os livros. Percebendo que regressávamos aos livros e às páginas, às citações, à sua colecção nas paredes e no corpo, M. lia também e, apesar do tempo a atravessar como a nós, mantive sempre o mesmo gesto absoluto e inquieto de folhear procurando o movimento perdido na infância. Repetia, como o seu único refrão não lido: hoje o movimento de ontem não veio. Não se escondeu entre as folhas dos meus livros, destes livros. Não estava lá, mandou outro. Era outro. Amanhã compras outros para ver se o encontro?
Agora não adormecia com tanta facilidade e nós já não ousávamos desenhar. M. era pintora e desenhava o inaudito. Pintava os sopros. Nós as imagens. Talvez essa fosse a grande diferença entre nós. Nós líamos encontrando imagens, M. lia procurando os sopros. Por isso nos tocava e em cada parte particular do corpo deixava a citação de uma passagem que por ali entrava, era a sua paisagem:
Os teus seios, amigos das minhas serpentes;
Os teus braços, álamos à porta do castelo;
As tuas mãos, tábuas de juras mortas;
As tuas ancas, pão e esperança
E quando chegava repetia a vontade de tocar com que nos largava ao deitar. E deixava passar pelo corredor das mãos com que colava um sopro aos meus ouvidos, o segredo. O segredo que me percorria como um frio que vinha de outro mundo. Era tão frio que me arrefecia o coração. Até que um dia, quando sentada continuava a procurar, ouvi o segredo e M. não estava. Quem me dissera o segredo? De onde vinha? Olhava em redor e nada encontrara. Quem mo soprara destruindo o seu silêncio de anos, o seu estar fechado desde sempre na alma que guarda o imemorial? Quem? E quando perguntei alto, quem? Ninguém respondeu, ninguém disse nada. Intrigada procurei com o olhar e não vi quem o dissesse rompendo o silêncio daquela sala onde estava sozinha sentada a ler. Então percebi as duas coisas que M. sabia e pelas quais talvez me tivesse sido enviada: que um segredo não se diz à linguagem mas ao Silêncio, que o Silêncio tem guardado o inesquecível. Por isso Deus e a Música o habitam como hóspedes, o masculino e o feminino com que a Língua pura foi criada para se ouvir no acto de pensar e no acto de ler. Audição dos sopros e da canção de amor de Deus. Ler e pensar que não são senão o mesmo. Então recebi de novo Platão. Ouvi-o dizer-me que pensar é ler o que está inscrito na alma. O que sopra da alma para a linguagem. Que dialogar mais não é do que uma questão de cadenciar os sopros de cada um com a ordem da alma e não do mundo. O diálogo, a tarefa demiúrgica dos homens para arredarem o ruído e a indefinição do sentido. A definição não a procura do significado, como tinha aprendido, mas um acerto à sinfonia da alma. Aos seus sons. A palavra adequada era afinal um som que irrompe do silêncio de quem lê e de quem pensa. O movimento da alma sobre si mesma, a dança da Verdade, o segredo contado ao Silêncio. Balada de Amor e Saudade.
Atravessei a sala cheia de luz e, despida de sombra, voltei a ensaiar desenhar o anjo de Klee, o Anjo da História. Quando o terminei, ou a imitação estava próxima do reconhecível, acrescentei duas conchas às asas. Um pouco de Mar para dar conta do meu Amar pelas criaturas que moram no fundo sem fundo da Vida. Um anjo com som a Mar e a Amar. Um Anjo para M. me escutar.
Nessa tarde, ao entardecer, sob o relvado continuava a ler. M. chegou com uma folha escrita. Nada que conseguisse ler mas que o poema entre-mãos talvez ajudasse a receber:
Por vezes os amantes, ou aqueles que escrevem,
Encontram palavras que, mesmo que se desvaneçam,
Deixam no coração um lugar feliz –
Porque, sob o que se passa, nascem
Constâncias invisíveis;
Sem que abram qualquer trilho,
Algumas tornam-se estribilhos de dança
Para M., que toda a vida tinha lido sons, confiado nos sons, as palavras não emergiam na superfície da folha pelo que mostram, mas pelo que fazem dançar. Abraçou-me e disse:
Mãe, o teu livro tinha o movimento de Ontem. De outrora. O Anjo que desenhaste moveu-se. Tu tinhas o seu movimento preso no coração.
Abracei-a e gritámos como na infância, até a hera revelar o seu vento livre em direcção ao Tempo em que os homens chamavam liberdade ao movimento da mão que lendo abria as páginas da alma e da História e, fixando lentamente as conchas no lugar das asas, percebi que só o Amor empresta movimento ao instante. Nesse que me era dado viver, o movimento primordial acordara, M. escutara-o e encontrara-o e tudo na História poderia de novo recomeçar. M. tinha-me conduzido, pelos livros, à audição de Deus que soprando por uma flauta criou, com a Música, os sopros ou os sons únicos de tudo. Era noite. A folha com o nome ilegível era agora clara: só a folha onde ainda há vento acolhe a música, e Deus pode morar para se deixar tocar, não ver. Ou a gaiola de pássaro, que aberta ou fechada, nos prepara para a leitura do poema do mundo, que é uma litania, ou um louvor. Um acerto, uma gaiola aberta, onde o nome é o sopro que eleva a natureza da coisa; um desacerto, uma gaiola fechada, onde o nome emudece a natureza de cada qual. Escutando ainda os seus sons:
É a paisagem ressoando, é o badalo de um sino,
É a libertação tão pura do entardecer; -
Tudo sinais que, em nós, anunciam
A vinda de uma figura terna e nova.
Assim se compreende que vivamos num incómodo estranho
Entre o arco longínquo e a flecha tão penetrante:
Entre o mundo demasiado vago para apreender o Anjo
E Aquela que, por excesso de presença, não o deixa vir.
Aprendeu que ler é esperar o estranho, mas essa espera é regulada pelo doseamento na nossa voz do ruído e da Música. O ruído o vago, a Música a excessiva presença que deixa para sempre Deus no invisível da página e da alma. Mas murmurante no seu movimento. Nesse em que só a infância e os sopradores atentos se lembram de procurá-Lo. M. relia Rilke todos os dias e dele colhendo frutos e apontamentos refez o Jardim do Paraíso na sua interioridade, no Jardim do Silêncio. Então, tendo todos aprendido o exercício da leitura, floriam falando e perceberam por que razão a morte é uma flor.

Em louvor da oração sapiencial que foi escutar Jean-Yves Leloup na Faculdade de Letras de Lisboa. Em louvor dos que trouxeram livros certos até à minha alma e às minhas mãos. Em louvor de todos aqueles que, sendo invisíveis, são o sopro rítmico com que a vida flúi e se desenvolve como uma melodia e não como uma narrativa. Aos seres musicais que com enlevo e arte desenham no nosso corpo movimentos com que podemos dançar de olhos fechados, na noite escura, sem medo e com confiança ou fé nas paisagens invisíveis.










3 comentários:

  1. Lindo texto. Lembra-me "A Dupla Vida de Veronique", de Kieslowski.

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  2. É um pensar-dizer musical, que nos embala de regresso ao Jardim do Paraíso... Mas sabe que nele há o sem fundo... Só assim se pode estar no Paraíso, dele livre.

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  3. Só dele livre...e diz Kundera assim na "Ignorância":
    "O regresso, em grego, diz-se "nostos". "Algos" significa sofrimento. A nostalgia é portanto o sofrimento causado pelo desejo insatisfeito de regressar."
    O Paraíso é só pensável, só audível porque de retorno impossível. É essa sua dimensão de impossibilidade que nos livra dele e o torna audível. Só o som liga o que está para sempre afastado. A música é por isso mesmo a linguagem do distante e do estranho. O Paraíso é um jardim musical, às vezes como as orquestras, um silêncio. Também por isso o lugar onde não entra, que está livre, dos que não sabem tocar, mas para onde dirigem os ouvidos, os que foram tocados. Também é, o Paraíso, o absurdo.

    P.S. Pronto, agora a Ana Margarida ajudou à decisão, vou mesmo comprar "A Dupla Vida de Véronique." Andava a adiar...adiar...vou rever. Até porque é como o "Azul" e o "Vermelho", lindo! Obrigada pela sugestão.

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