terça-feira, 25 de março de 2008

Para a Sibila, de um fantasma que se recusa a falar com outros fantasmas



Deixei de acreditar na morte no dia em que soube que uma tia muito querida tinha ingerido veneno e estava em agonia no hospital. Tratava-se de uma pessoa que sempre tinha parecido fortíssima, com uma fé inquebrantável. O problema é eu acho que ela nunca se aceitou. Toda a vida acreditou que nós somos filhos do pecado, quando, de facto, o pecado não existe.
Deixou para trás o marido, três filhas, quatro netos, tudo gente que ela amou, trouxe sempre envolta dum afago profundo. Amou, amamentou, amassou pão, deu-se à vida. Mas lá no recanto mais negro da sua alma, o fantasma, o ego, o filho do "pecado", foi-se alimentando de angústia e desespero. E quis provar que a morte é real, que a morte é o culminar do sofrimento.
Deixei de acreditar na doença no dia em que soube que um tio muito querido que tinha o nome que hoje é do meu filho, sofria de um cancro incurável dos pulmões. Quis olhá-lo nos olhos no dia em que lhe contaram a "verdade". Tratava-se dum homem que tivera uma vida tremenda. Começara a trabalhar nas obras com nove anos. Reformara-se como polícia há poucos meses e começava a ter uma vida mais parecida com uma vida como deve ser. Nesse dia nos seus olhos, na intensidade cristalina das suas lágrimas, lá no fundo, para lá do desespero, pude ver a alma de quem ama incondicionalmente.
Na nossa última conversa (a minha primeira conversa sem ser de fantasma para fantasma, mas nessa altura não poderia ter a noção do que representava isso), pelo menos na nossa última conversa nesta vida intermediária, ficámos em silêncio, no meio da rua, ele ia para o hospital e eu fui ao seu encontro para tentar dar-lhe ânimo e ficámos um tempo imenso em silêncio. Como poderia acreditar na doença? Mas nessa altura ainda acreditava na morte e por isso a única coisa que me vinha à cabeça era uma troca: eu vivera uma vida incomparavelmente mais suave que a sua...
Mas cada um é Deus a ser homem. Na altura essa ideia nem me passava pela cabeça. Hoje o budismo dá-me vias para lidar com essa verdade radical, pois, no fundo, o ateísmo é a via transcensora a própria senda do divino.
E sendo cada um a alvorada do Infinito...
Talvez seja uma forma de loucura. E esse apelo do silêncio... Pode parecer paradoxal, no fundo é paradoxal, mas é um apelo ao mesmo tempo sincero, mas, também, certamente, egótico. Mas cada um lida com o seu fantasma como pode. Há dias em que ele toma conta da casa, o que é a fazer é deixá-lo barulhar e saber que no fim de contas nada daquilo é importante. Porque o segredo é amar e não se consegue amar em ponto pequeno. Amar é darmos soltura aos que amamos, deixá-los ser o que são, assim infinitos, perfeitos, sem pecado e ao mesmo tempo com as pequenas coisas que nos irritam mas que fazem parte da sua perfeição (o roer das unhas, ou a mania de fazerem ruídos com os pés...). E nenhum acto do amor é fantasmático. Como toda a gente sabe.
E o OSHO é um nome escrito em folhas de papel. Vende bem nas bombas da gasolina.
E é verdade que os alunos do secundário... Só gostava que os meus alunos quando começarem a acreditar em algo (e geralmente acabam por acreditar que a vida é uma luta em que cada um deve desunhar-se para "subir" mais que os outros) tenham a noção que ao darem crédito a algo, estão a dar-se em penhor, estão a dar o seu tesouro em troca das muitas coisas que lhes prometem. O que eu gostava é que não penhorassem com a morte, ou com a doença. É uma barganha que sai demasiado caro. E também não quero que acreditem em mim, como é óbvio.
E obrigado Sibila por esse texto tão inspirador. Apaixonado. Como deve ser tudo nesta vida intermediária.
:)

3 comentários:

  1. Mas eu acredito em ti, Paulo! :) Acredito que não existe morte, que a doença é uma invenção muito útil para aqueles “seres meio efeminado e gananciosos, sempre prontos a trocar por notas sonantes umas apalpadelas aqui e ali”, que cada um de nós é que tem de lidar com o seu fantasma da melhor forma que sabe, dando-lhe ordem de soltura ou brincando com ele. Mas confesso que não consigo evitar sentir perplexidade quando vejo os deuses a dançarem com os fantasmas. O Osho tem uma expressão que me é recorrente, o “Don’t compromise!” É muito fácil falar e agir quando as coisas nos são favoráveis, tão bom ser mar, vento, serra. Mas se mergulharmos in deep shit, somos m*? Blherk!!! Claro que, nessas alturas, é bom lembrarmo-nos que aquilo que somos vai muito além de todas estas coisas. Descemos e subimos como num carrossel! Mais uma partida, mais uma viagem! Mas, como dizes, não é importante, pois “cada um é Deus a ser homem”. “E sendo cada um a alvorada do Infinito...”
    Com tudo isto, também aprendi que o Osho vendia bem em bombas de gasolina, o que é sempre uma informação útil :P

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  2. Mas, Sibila, o problema é que a gasolina se vende mal... :) Eu não encontrei discordâncias em nada do que escreveste. Mas há algo que me faz pensar: mesmo as pessoas que nos parecem mais "alienadas"/"iludidas" podem (e estão) estar a viver uma profundíssima experiência de iluminação.
    O "Don't compromise" não me agrada nada. Uma coisa é aceitarmo-nos e outra muito diferente é aceitarmos a injustiça, a fome, as desigualdades, a exploração, a exclusão... Se nos aceitamos quer dizer que aceitamos que a nossa vida deve ser uma vida liberta (talvez impossível) e aí não podemos calar a justiça, o amor, nem podemos fechar os olhos ao sofrimento.
    Mas aí é que começam todos os problemas... Os Sócrates (não o actual manequim que nos governa, é claro) têm aí a razão de ser do seu sacrifício.
    :)

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  3. Era uma manhã preclara como as madrugadas dos pássaros de Messiaen. _______________repousava morta e tinha as mãos frias. Quando chegou, na tarde anterior, depois dos preparativos e relatórios, trazia um sorriso para mim. Que importa saber se o sorriso estava nela ou em mim? Que importa saber se a beleza está no sujeito ou no objecto? Importa a beleza! Importa o sorriso!
    Era uma manhã preclara cheia do sol de Verão. Um paisagem para Rothko. Ela preferiria Turner. Que importa Rothko ou Turner, se ambos transformaram a cor em luz? Importa a luz!
    Veio uma tarde clara que atrasou a noite. _____________repousava morta e tinha as mãos quentes, depois do beijo. Que importa saber se eram as mãos ou o seu fantasma? Importa o beijo!
    Era uma tarde preclara com silêncio e lágrimas. _______________repousava morta naquela caixa lacrada a chumbo. Chamei-a, mas não respondeu, ou não consegui ouvir. Que importa o silêncio se não esqueci nem o sorriso, nem a luz, nem o beijo, nem o nome? Que importo "eu", se sinto _______________disseminada como o meu único e verdadeiro amor no universo? Se ainda narra, guiando o meu olhar e o meu coração, silenciosa na luz, no silêncio da luz, os meus passos para os segredos da vida e para os enigmas da linguagem? Não sei se está morta da mesma maneira que não sei se estou viva. Não é por isso que faz sentido a pergunta: "há vida antes da morte?" E, se isto a que chamamos viver mais não for do que estar morto? Se os místicos não falam de Deus, por que razão falamos nós da morte e da vida? Deve ser mesmo verdade que tornamos o inefável e o inexprimível em realidade Acreditamos mais do que contemplamos. Está uma manhã preclara e fria. Tenho frio. Está frio. Ainda deitada recebo um beijo nas mãos e um sorriso. Não é de ___________________, mas ela vem também. Na Primavera dos teus malmequeres e flores do campo, margaridas as preferidas, _ Paulo _ ela vem mais vezes. Visitamo-nos por seu intermédio. O das flores. Mas nunca sei se são só flores, ou se o são do jardim da Eternidade e florescem porque florescem. Que importa se são margaridas ou rosas? São flores senhor...o milagre, o mistério de alimentarmos a nossa indigência com a beleza mais do que com o pão e com as palavras.

    Nota: não sei fotografar mas ofereço as margaridas mais belas para colocares num vaso junto ao teu texto.

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