segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

O Carnaval ainda é possível ?



- Pieter Brueghel, Combate entre o Carnaval e a Quaresma (1559).

O jogo tensional dos contrários estrutura o mundo e as nossas vidas como manifestação do incondicionado que os unifica. Este combate (o pólemos heraclitiano) entre o espírito carnavalesco - de folia, liberdade e desordem, metamorfose, excesso e fruição - e o espírito ascético - que privilegia a razão, a autoridade e a ordem, a identidade, a medida e a renúncia - , não é tanto um confronto entre potências irredutivelmente antagónicas e exclusivas, mas antes a dinâmica coincidência dos opostos, o sempiterno abraço de Apolo e Dioniso, do Caos e do Cosmos, o Caosmos. O que todavia tanto mais intenso será quanto mais houver uma nítida demarcação das duas polaridades, que se excitam mutuamente pela sua diferença, distância e oposição, como na tensão erótica.
Daí que, em épocas civilizacionais como a nossa (no Ocidente), em que a vida mental e social se carnavaliza em muitos aspectos (pelo menos ao fim de semana) e a ordem dominante integra ao longo de todo o ano a experiência carnavalesca, sobretudo ao nível de um hedonismo mais imediato e grosseiro (a fruição sexual e alimentar nas suas dimensões menos subtis), haja tendência para se esbater a pujança iniciática e transformadora do Carnaval tradicional, momento de regeneração do Cosmos pelo regresso ao Caos. Atenuando-se ou dissolvendo-se os interditos, como experimentar o sentido libertador da transgressão ? Neste sentido interrogo-me se, no nosso caso, a verdadeira experiência do mundo às avessas e a verdadeira revolução transgressora não passaria por reintroduzir o espírito de ascese e renúncia nas dimensões da vida de onde foi expulso e tornado interdito em nome de uma fruição unilateral do seu contrário. Poderíamos então reencontrar um Carnaval mais autêntico, não reduzido a mero espectáculo e subproduto da sociedade de produção e consumo.

3 comentários:

  1. Na Floresta, de Aleksandr Ostróvski, apresenta-se a humanidade cómica. A humanidade sem feitos heróicos e sem rasgos divinos. A humanidade mascarada de tipos: a proprietária, a criadagem escravizada à maneira da dialéctica do senhor e do escravo, os pacóvios a quem a ignorância convém e os artistas. Os mais desmacarados de todos. Julgando-se incógnito, o sobrinho da rica proprietária, chega à floresta para pedir ajuda e acaba por ajudar. É o homem verdadeiro. Ser o coadjuvante, como se dizia quando aprendi os primeiros passos da interpretação de um texto, dos que são miseráveis mas conhecem e experimentam os sentimentos da mais pura expressão da humanidade e divina condição que somos: o amor e a justiça. Viandante sem destino, nómada no contínuo bailado de máscaras, os artistas cómico e trágico, reencontram-se e desabafam:

    Arkádi Venturoso: (…) Passei a cómico. Mas os cómicos multiplicaram-se demais; está tudo ocupado pela gente culta: antigos funcionários, antigos oficiais, antigos universitários…todo o bicho careta quer pisar o palco. Fazem-nos a vida negra. Depois, de cómico passei a ponto. Isto não está fácil para uma alma sublime, pois não, Guennádi Demiánitch? Ponto!

    Guennádi Malfadado (com um suspiro): É o fim de nós todos, (os trágicos) amigo Arkádi.

    Arkádi Venturoso: Só tínhamos um caminho, Guennádi Demiánitch, e até esse nos tiraram.

    Guennádi Malfadado: Porque é fácil; fazer palhaçadas não é uma grande arte. Agora um papel, alto lá! Não há ninguém.

    Um papel já ninguém quer fazer. Um papel, se a arte não é mentira, é a verdade. E a verdade implica que aquele que a diz seja incógnito. Porque a verdade rouba o “eu” a si mesmo. A verdade expulsa-nos até para fora do corpo, que é a grande máscara da nossa individuação. O corpo é a grande estátua de pó. A verdade não quer o corpo nem o cómico. Quer a poesia.

    “É difícil inventar uma intriga, porque a intriga é uma mentira e o assunto da poesia é a verdade. Feliz foi Shakespeare que se servia de lendas já existentes: não só não inventava mentiras, mas na mentira do conto introduzia a verdade da vida. O trabalho do poeta não é inventar uma intriga inexistente, mas explicar um acontecimento mesmo que inverosímil pelas leis da vida.” (Ostróvski, Excertos dos “Cadernos”.)
    A poesia sabe as duas leis da vida: o Nada e o Sonho. A dor assenta sobre eles. Mas Pascoaes é poeta, Ostróvski é Russo. Guennádi Malfadado é artista trágico, e nós somos o espectador no palco. Nós somos os cómicos. Não lemos poesia, não conhecemos a dor, não vimos o trágico, e somos os funcionários, os universitários…os proprietários, os servos de quem a Verdade e o Incógnito estão a rir-se. Nós somos os que nunca experimentaram a máscara. A verdade. Nós somos aqueles para quem Guennádi Malfadado diz: querias falar comigo? Querias…mas eu falo como Schiller e vós como um mangas-de-alpaca! Mas nesta comédia nós somos os habitantes da Floresta, os selvagens que têm medo dos que se mascaram. Somos o Ponto! O único que no palco não está mascarado e não é criador. Mas recriador…vivemos na Floresta e não sentimos saudades do Jardim das Delícias. Há apenas almas cómicas, mas já não almas sublimes…como lamentam os actores. Não somos almas sublimes. Ou ainda, Carnaval sempre somos, Páscoa é que nunca fomos, nem nos vestimos de Deus. Talvez seja mesmo Tempo de Ser(mos) Deus.

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  2. Paulo,
    Gostei muito desta reflexão.

    Quem mergulha num hedonismo frustrante, isto é, quem não desfruta do prazer de viver verdadeiramente o Prazer, vivendo frequentemente na imediatez compulsiva dos impulsos para ter boas sensações ou bons alívios é porque vive uma grande tensão por tudo o que faz sem prazer, e para ter quantas vezes o que não traz prazer nenhum. Que aflição será constatar a falta de Prazer, dia após dia… preso, maniatado, controlado. O melhor é fechar os olhos ao tormento, isto é, aceitar a impotência.

    Ai... sim! Venha a renúncia à falta de respeito por si próprio.

    Eu diria que o Carnaval mais autêntico (a transgressão libertadora) seria aquele em que, finalmente assumida a responsabilidade da falta de Prazer, brotasse a Vontade de se ser autêntico.

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  3. Sem retirar o que como apreciação geral disse, acrescentaria, pelo menos para mim mesmo: talvez no Carnaval humano também aflore um outro Carnaval, divino; talvez o prazer grosseiro dos homens oculte no mais íntimo a divina beatitude. Talvez existam dois caminhos para descobrir uma coisa e outra: o da renúncia e o da fruição totais, se no seu extremo coincidirem. Claro que é no meio que está a virtude, mas não é a virtude o que está em causa.

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