sábado, 2 de fevereiro de 2008

Heaven and Hell


Heaven and Hell é, entre muitas outras coisas, o título de um álbum fabuloso do Vangelis (que parece descrever a história deste nosso planeta - e portanto também de nós próprios - desde as origens mais remotas, no espaço interstelar), mas descreve também dois tipos de experiência que têm em comum a abertura.

No primeiro caso a abertura é fruto do maior desejo interior, unido a tudo o que somos. Ou seja, além de voluntária, é desejada por cada parte do nosso ser. E quem o faz é porque encontra naquilo para o qual se abre a mais deslubrante e transcendente Beleza. Era de supor que todos os casamentos fossem desse tipo ^_^ mas há quem tenha dúvidas!

No segundo caso a abertura faz-se pela força, pela dor, e em relação a algo que o sujeito aberto acha desprezível e que lhe traz a desfiguração e a morte.

Apesar de num dos casos atingirmos um deslubrante prazer e um crescimento ou complemento, e de no segundo caso sermos forçados à mais terrível dor, desmembramento e desfiguração, em ambos os casos se trata de uma dissolução. A diferença fundamental é que a dissolução no Paraíso complementa, completa, torna Uno e total, ou seja, nada destrói a não ser as fronteiras, os limites, reconduzindo tudo o que já existia em nós a outros pontos, onde se interligam com muitos outros aspectos da realidade. Fomos transfigurados, mas não desfigurados, perdemos as fronteiras, mas não o valor. Nada do que aprendemos se perdeu, nada do que somos, nem uma gota, nem a mais pequena parte, deixou de existir: apenas contextualizámos o que éramos e continuamos ainda a ser, num horizonte muitíssimo maior, mais vasto, onde tudo o que éramos ganha ainda mais (não menos) sentido. Trata-se pois de uma dissolução onde nada se perde, tudo se transmuta em algo maior.

No caso do Inferno, também existe a mesma dissolução, mas aí, pelo contrário, há desfiguração. Ao Obrigar à abertura, ao forçar a abertura, estamos efectivamente a destruir algo que existe. O que isto significa é que, em vez de o antigo ser integrado no novo (como no Paraíso), é esmigalhado por ele, ou seja, substituído, sem que haja um enriquecimento mútuo. Enquanto que, por exemplo, uma imagem do Paraíso seria: dois amantes que se comem sem nada retirarem um ao outro, ou seja, o seu comer é um ir lá, atravessar, encontrar, num processo de duplo crescimento (win-win), o Inferno acontece para um animal que é comido vivo: a sua dissolução é pura perda, a desfiguração não lhe traz maior integridade, pelo contrário, retira-lhe a sua essência, a sua fonte de vida; aquilo que ele era desaparece para sempre, primeiro é desfigurado, depois aniquilado, até ao nada.



Duas aberturas, duas dissoluções, dois desaparecimentos, mas numa cresce-se, transcende-se, face ao Divino Integrador, na outra, diminui-se, desfigura-se, morre-se, face ao Diabo Sedento...


Nem sempre é claro qual é qual, por exemplo no casamento, às vezes pensamos que estamos a entrar numa, e é a outra. Ou na morte, quem sabe?

14 comentários:

  1. Referes o casamento como um espaço onde podem acontecer os dois tipos de disolução.

    Que tal falar também da educação, tendo em conta que é suposta fazer os seres crecer e trancender os seus limites, mas acaba por estar permeada por prácticas sado-masoquistas com tanta frequência?

    Basta visitar qualquer escola ou universidade, ou até aquelas famílias "de bem" onde as criancinhas parecem tão quietinhas e bem educadas ... E no lar reina uma paz mórbida ...

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  2. É bem verdade! Eu tenho imaginado, desde há anos um lugar ideal, uma espécie de Atlântida virtual, onde tudo seria mais ao meu gosto. E fui percebendo, à medida que fazia as minhas experências imaginárias, que, de longe, o mais importante, é a educação (eu sei que estou a dizer uma trivialidade). Mais especificamente acho

    1) o ensino deveria sempre ser livre, as crianças deveriam poder escolher o que e quando estudar. De modo a ser visto como uma oportunidade e um prazer (idealista eu?); para os âmbitos mais necessários (como aprender a ler e a escrever e os rudimentos da matemática) deveria haver muitos professores, para que cada criança escolhesse aquele que mais se lhe adequasse;

    2) os temas a estudar deveriam incluir coisas muito complexas como o estudo de motores, vôos espaciais, astronomia, etc, desde tenra idade. Estas opções permitiriam a quem tivesse os dotes e o prazer aprender por exemplo mecânica enquanto aprendia a ler.

    3) o estudo das Artes, especialmente da música, deveria ser oferecido a todos, assim como o desporto. Quem quisesse ir combater deveria também ter essa possibilidade, a das artes marciais, desde cedo (o material do exército);

    4) Viajar é extremamente importante, as viagens de estudo a outros países e culturas diferentes, muitas religiões, ritos, convenções, etc. Para dar um sentido de perspectiva.

    5) last but not least, não deveria haver grande distinção entre estudo e trabalho. As "empresas" deveriam poder beneficiar do génio dos pequenos inventores. A articulação da investigação das grandes empresas deveria estar articulada com as escolas desde a pré-primária. Os miúdos poderiam inventar modelos de telemóveis, sugerir soluções para problemas mundiais, etc. Eu quando era puto (tipo 8 anos) tinha muito mais ideias do que hoje e acho que eram mais úteis!

    Em tudo isto o mais importante seria a Liberdade de cada um escolher o âmbito que mais gostasse e não vermos as crianças como robots aos quais temos de ensinar a ser adultos, mas como aqueles que trazem uma nova luz que devemos saber aproveitar.

    Perdoem-me se estou a dizer coisas sem pés nem cabeça; sei que o Agostinho da Silva e outros autores falaram bastante sobre estas questões. Infelizmente sou um preguiçoso e tudo o que sei sobre isto veio-me destas imaginações e da minha pouca experiência como professor do secundário.

    Beijinhos ^_^

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  3. Afinal "o Inferno acontece para um animal que é comido vivo"... Bem me parecia.

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  4. Sem dúvida, mas um Buda não o veria, pois, da perspectiva da imortalidade, vida e morte são o mesmo e não faz sentido ter apego a uma ou outra. Por isso, para um Buda, ser comido por um animal seria uma experiência tão maravilhosa como outra qualquer, e nada desintegrante, exactamente como descreveste na passagem sobre os animais. Primeiro porque ele reconheceria a sua presença como mera máscara da sua infinitude e saberia que não podia ser destruído, no fundo, estaria a comer-se a ele próprio (o que até é motivo de riso). O Inferno é a ilusão provocada pelo nosso apego e correspondente ignorância.

    A questão é: como chegar lá? (ao fim das ilusões) No fundo penso que é aí que as nossas experiências divergem um pouco.

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  5. "love is the answer to a question that I have forgotten" (Regina Spektor) no fundo todos os caminhos vão dar a Roma, e o que interessa o caminho que se tomou, desde que se lá vá dar?

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  6. Creio que um Buda o veria (o inferno do animal comido vivo), não como realidade, mas como ilusão, pois a definição da Budeidade é um estado de omnisciência tanto a nível absoluto como relativo, em que se vê a vacuidade de tudo e ao mesmo tempo toda a forma singular de ilusão e dor dos seres que ainda não vêem essa vacuidade e, devido aos seus organismo psicofísicos, padecem as suas alucinações como realidades sensíveis. Por isso os Budas, para os quais não há sequer seres (nem Budas), sentem uma compaixão infinita por todos os seres aparentes e manifestam-se em infinitas actividades para os ajudar, agindo de todos os modos possíveis sem conceito de sujeito, objecto e acção. Pela sua sabedoria não permanecem no samsara e pela sua compaixão não permanecem no nirvana, não os distinguindo.
    Creio que ficar apenas com a visão do absoluto nos torna estéreis, como uma ave com uma só asa: não voa e não vai a lado algum; fica apenas no chão a girar em círculos sobre si mesma...

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  7. Concordo com cada palavra do que dizes, por exemplo que os Budas "manifestam-se em infinitas actividades para os ajudar, agindo de todos os modos possíveis sem conceito de sujeito, objecto e acção".

    É claro para nós que o Buda não é uma pessoa e a sua "acção" (ou Existir) não é motivada pelo apego. Mas como saber se as nossas o são? É que se o Buda já está em toda a parte, quem sou eu, como ser humano, para achar que posso ajudar o Buda (o rato) tirando-o das garras do Buda (a serpente), melhor do que o próprio Buda (o mundo - tudo)?

    é na resposta a esta questão que as nossas mentes e caminhos se dividem. Tu consideras que a melhor maneira de revelar o Buda dentro de nós será libertarmo-nos do apego cultivando a compaixão, a meditação em vista do aniquilamento, pondo esse aniquilamento em prática através de muita obras (para não ser uma coisa meramente mental) entre muitas outras formas e técnicas de libertação. É como se houvesse um lado de nós (por exemplo do ódio, do egocentrismo, da carência, etc) que tivesse de ser trabalhado, superado, que estivesse mergulhado em ilusão.

    eu também acho que devemos libertar-nos do apego, mas para mim isso acontece quando compreendemos que "tudo" já é Buda, incluindo cada parte, desde a mais ínfima, de nós. E que se *tudo* é Buda, não há necessidade de alterar algo em mim, pois tudo já é Buda. Ilusão é não reconhecer essa perfeição. Por exemplo os ódios, a depressão, a carência, a tristeza, a infelicidade, a incompreensão, até a dependência e o sofrimento por ela causado, tudo isso é também o Buda! Por isso não tenho de mudar nada em mim, nem mudar o Mundo. tenho apenas de o Viver de olhos bem abertos. Tenho apenas de reconhecer o Buda que existe por toda a parte e que eu sou (e que nanda nem ninguém é, em particular).

    Por isso, numa palavra, ser Buda é ser LIVRE e viver a Paixão e o Mistério. e ser Livre é compreender que nada há a perder, que não se pode pecar, nem cair, nem deixar de ser "iluminado" e que esta vida é uma brincadeira e não faz grande diferença se acabar porque a brincadeira é Eterna... Viver o Mistério é não ficar contente com este intelecto de Macaco Nu e tentar sempre trazer um pouco mais o mistério a Nu. Através da ciência, da arte, etc. Viver a Paixão é vivermos instensamente o que somos (mesmo que outros considerem egoísta, cego, etc). ficaria muito contente se todas as pessoas fizessem isto, penso que a sociedade seria finalmente emancipada e haveria muito mais "riqueza" daquela que verdadeiramente nos torna pujantes de felicidade.

    Esta, quanto a mim, é a melhor maneira de ser Buda, de Ser Amor.

    E repara que fala-te um miúdo sem qualquer sucesso na vida (no outro dia a minha mãe disse-me, mas tu ainda não fizeste *nada* da tua vida!!!). Nada! ^_^

    Acho que ser Buda aqui é também aceitar que há muitos caminhos diferentes para a Felicidade.

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  8. A visão da Grande Perfeição (Dzogchen) de tudo é o âmago e o cume da via budista e é por aí que procuro ir. O que quero dizer é que ver isso, em termos absolutos, não impede e antes exige, em termos relativos, dar comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, com todo o esforço que isso possa inicialmente implicar para o nosso cómodo egocentrismo. Porque ficar a ver a perfeição do ser que morre de fome ou sede, sem nada fazer, é demitir-se do aspecto de compaixão da natureza de Buda. Se tudo é Buda, porque não será também Buda tirar o animal que vai ser morto das garras do homem que o vai matar, se daí resulta um maior bem para todos ? O animal preserva aquilo que mais deseja, a vida, e o homem liberta-se de uma acção que terá a consequência kármica de o fazer passar pelo mesmo. Quanto mais visão da Grande Perfeição de tudo, mais compaixão e mais acção espontânea, sem esforço e sem deliberação, se bem que estes não sejam de rejeitar no início: é isto que tenho encontrado nos textos e nos ensinamentos budistas e é isto que creio fazer sentido.
    O problema é que, quando intelectualmente vemos a dimensão absoluta das coisas, temos tendência a achar que já não há nada a fazer, porque isso é mais fácil e dispensa-nos de coisas aborrecidas e ditas retrógradas como o treino da mente, a ascese, a ética, etc... A meu ver, tanto o desprezo disso como o apego a isso podem não ser senão estratégias do ego. É por isso que creio indispensável a orientação de um Buda concreto, que nos desconstrua essas estratégias e nos indique o caminho para cada um de nós mais adequado.

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  9. Caro Paulo, eu utilizei uma técnica diferente para me descondicionar, em todo o caso também eu tenho um Mestre que me guia e Ilumina e pelo qual estou mais grato do que tudo o resto na Vida. Chamo-lhe "Mestre Interior" e, no fundo, só a Ele dou ouvidos e só nEle confio. Guardo com respeito e carinho tudo o que disseste, mas peço-te que, mesmo que sejas o próprio Deus, perdoes a minha reticência, pois eu seria infiel ao meu Mestre Interior se confiasse em alguém que não nEle.

    Abraço!

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  10. Não pensarás decerto que eu pretenda que confies em mim !... Sobretudo se fosse Deus !... Admiro a tua capacidade de escutar um "Mestre Interior", sem enganos... Já deves ter seguido muitos Mestres exteriores para aí chegares.

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  11. sem erros não diria, mas certamente que confio e procuro ouvi-lO acima de tudo e todos, sim!!

    Mas é bem verdade isso dos mestres exteriores. Só depois de ter escrito este comentário relembrei o quanto tenho a agradecer ao (para mim) grande Mestre exterior que foi Guilherme da Luz, que me guiou e sem o qual a minha jornada, ou seria impossível, ou teria demorado... séculos...?? é difícil de imaginar!!

    Bem Hajam os Mestres exteriores que nos conduzem a esse beyond Paradise que é estar na companhia do Mestre Interior (único e sempiterno Mestre...)

    Abraço Grato! ^_^

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  12. Embora tardiamente, felicito-vos por estes debates tão esclarecedores e enriquecedores.
    E tu Luar Azul, não sejas apenas espectador, cultiva a compaixão,
    não te demitas "do aspecto de compaixão da natureza de Buda.", como diz o Professor... deixa-te ser absorvido, engolido conscientemente por ela... verás como tudo será diferente ! Acredita!

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  13. Cara Brunhild, espero que a compaixão te leve onde queres chegar... Eu tenho outros vôos e só me acompanha quem quer... ^_^

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  14. Com certeza Luar Azul !
    Gostei da tua resposta... Clara e objectiva.

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