sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

De regresso do cinema, a pensar na minha avó

(Como podem ver pelos acentos, estou a escrever do computador da minha casa;-). )

Queridos,

Aqui já faz tarde, mas não queria deixar de partilhar com vocês o seguinte: Acabo de voltar do cinema, onde vi "Persépolis", um extraordinário filme de animação sobre crescimento, repressão e exílio da Franco-Iraniana Marjana Satrapi (http://www.sonypictures.com/classics/persepolis/). Aconselho-vos vivamente este filme francamente tocante.

O que me tocou mais em todo o filme foi a avó de Marjane, uma senhora extraordinária a vários níveis, que ela não voltou a ver depois de partir para o exílio em França.

A minha querida avó encontra-se bastante doente e tenho muito medo de não voltar a vê-la. Os voos dos EUA para Portugal estão caríssimos e como doutouranda e bolseira, estou sempre a contar os tostões. Além disso, embora a professora de quem eu sou assistente já me tenha dito que me dará vários dias de nojo se a minha avó partir antes do final do semestre, não sei se o meu departamento me deixaria tirar uma semana para poder vir a Portugal.

A vida de embarcadiça nas Caravelas também tem o seu lado menos feliz:-/ ...

A minha avó tem sido o bastião da minha família e uma garantia de sanidade mental para todos nós. Tal como a avó de Marjane, a minha querida avó ensinou-me um princípio fundamental: A integridade a autenticidade, seja qual for o preço a pagar.

Escrevo-vos isto ainda comovida.

Ao voltar a casa reparei nas ruas da cidade da Nova Inglaterra onde estou neste momento a morar. Tudo limpinho, arranjadinho, organizadinho, não se vê um lixinho no chão, um cão ou um gato vadio. Todos os vestígios de imprevisibilidade, angústia, sonho, gargalhadas, sexo, misticismo e morte foram empacotadas e jogadas nos bairros negros, hispânicos e nos campos de batalha do Médio Oriente.

Tenho muito medo que, quando a minha querida avó se for, vá com um ela uma forma de vida que tenho medo esteja a desaparecer do nosso país e a ser substituida a passo galopante por esta planificação limpinha e artificial do género da que nos rodeia aqui no "college hill". Uma forma de vida marcada por uma forte ligação á terra, ao amor na sua forma mais autêntica (não a versão empacotada de hollywood), á comunidade, ao corpo e ao Divino.

Um modo de vida marcado sobretudo pela integridade e autenticidade.

Tenho medo que tudo o que reste seja a ânsia pós-cavaquista de "sucesso", de ter "um negócio rentável", de "parecer bem" de "ser moderno", o que significa "ter uma vida comfortável e não ter de lidar com a doença, com o sofrimento nem com outras manifestações da vulnerabilidade humana", "não ligar a beatices e pensar em nós mesmos porque ningúem pensa em nós", "não aceitar prendas de ningúem para que depois não nos sintamos obrigados a dá-las", "não sermos um fardo para ninguém e não permitir que ninguém o seja para nós", "mantermo-nos o mais possível longe da mixordice da vida do campo, que é só ignorância, tacanhês e pobreza" e, acima de tudo "mostrar ao mundo que somos alguém".

Mentalidade esta que já está a erodir o relacionamento dos membros da minha família na casa dos quarentas e muitos/cinquentas/sessentas e poucos. Receio que quando a minha querida avó se vá, o seu egoismo mostre a sua face mais feia e que acabem todos por se desentender.

A minha avó é das poucas pessoas da minha família que sempre me amou pelo que eu sou e nunca me encarou como "o caso de sucesso", "o troféu da família" para mostrar ao mundo "que afinal somos 'alguém'". Isto porque ela nunca conseguiu perceber o que eu ando a fazer nem se rala com isso. O que lhe interessa é que a sua neta continue a visitá-la com o mesmo entusiasmo de sempre.

Quem de dera ter património para comprar a casa dos meus avós, pois tenho a certeza que os meus pais e tios a vão vender ao primeiro investidor imobiliário que apareça, que de certeza irá deitar tudo abaixo pois "quem se interessa por uma casa velha e fria? Tu é que és tonta e lírica por quereres passar tanto tempo lá na parvalheira. Parece que não dás valor ao comforto urbano em que cresceste e fez de ti o que és hoje (?)"

O meu coração doi-me.

Obrigada por aturarem o meu desabafo.

3 comentários:

  1. Até a mim o coração me doeu, Ana, por te ouvir assim, nessa revolta triste, e dividida. A minha Avozinha partiu há um mês. Teríamos que entrar no tema da Morte, que alías, estando nós na Páscoa, é excelente altura. Quando digo Morte digo também Imortalidade.

    Não fiques a pensar muito se vens ou não vens a Portugal para a tua Avozinha. Vem e mai'nada! Antes de.


    Um beijinho

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  2. Comoveu-me o texto, muito arrumadinho que aqui partilhou.
    A minha alma também sofreu mortes dolorosíssimas de entes muito queridos. A questão da morte, do abandono dificilmente aceitável para nós da presença física das pessoas que amamos faz parte do sofrimento por que todos passamos.
    O que dói mais é pensarmos que esse sentimento, quando chegar a nossa vez, tenha que ser experiençado por aqueles que muito amamos.
    Mas, devo dizer que os meus entes e os de todos nós que já não vivem neste mundo dos sentidos, não morreram de facto. Vivem em nós de um modo mais "real" do que pensamos. O que foram e nos ensinaram com a sua vida fica sempre inscrito em nós e nas nossas acções. por isso devemos agradecer e saudar a sua vinda ao terreno de determinado tipo de sentimento saudoso. O que essas pessoas foram, a ideia que deles fazemos é eterna e é essa que voltará.
    Pessoa terá dito que no mito de D. Sebastião, não é o seu corpo físico que devemos esperar, mas o seu espírito e a sua demanda e vontade. Pois não é assim?

    Muita paz!

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  3. O meu comentário faço-o em verso, em memória das minhas mortes:

    Nas tardes de Domingo/Dormia-se até tarde./Só a Mãe sustentava no seu colo/Aquele mundo./Das suas mãos, o pão e o leite,/o mel e as nozes/Faziam o suave milagre dos dias.

    Pior do que morrer/Éperder a memória./É terem vendido a casa/E alugado os seus fantasmas.//Pior do que morrer/É estar perdido,/Não reconhecer os cheiros e os sabores da infância.//Fantasma errante/Flanado ao longo do rio/De onde já não partem/Nem chegam barcos/Para lugar nenhum.//Um porto moribundo./Eis o que resta da alegria!

    Poemas que dor tece.

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