sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Da natureza primordial

1. A natureza primordial de todas as coisas é desprovida de qualquer característica, incluindo a de ser a natureza primordial de todas as coisas e desprovida de qualquer característica. É alheia a todos os conceitos, imagens e palavras, incluindo o ser-lhes alheia. Não há discurso ou símbolo que a possa verdadeiramente formular, podendo apenas sugeri-la, tanto menos impropriamente quanto mais os conceitos, imagens e palavras respeitem essa irrelação e se assumam e exerçam no limite que apela a sua conversão em limiar da sua própria recriação, suspensão e transcensão na experiência inefável que, com a profunda transformação que opera, é a única garantia da sua mesma autenticidade. Isto aplica-se antes de mais a este texto, que é insistente e urgente convite ao seu total esquecimento na experiência para que aponta.

2. Nos limites do pensamento e do discurso é possível sugerir a natureza primordial de todas as coisas, sem deixar de a trair, como o infinito, um nada-tudo e um nada que se pode relativamente manifestar ou ser percepcionado de todos os modos e em todas as formas possíveis, nele intemporal e a cada instante claramente presentes. Nos limites da imaginação é possível sugeri-la, sem deixar de a trair, pela imagem de um espaço infinito, insubstancial e sem obstáculos, transparente e luminoso, inalterável e inseparável de tudo o que nele ilimitadamente se pode manifestar ou percepcionar. Nos limites do pensamento, do discurso e da imaginação é possível sugeri-la, sem deixar de a trair, como um infinito esplendor, um ilimitado nada e tudo poder ser, pura energia informe e insubstancial susceptível de irradiar, assumir e ser experienciada segundo irrestritas modalidades, sempre cambiantes e evanescentes.

3. Supõe a primeira possibilidade a não confusão do nada com o não ser e com a sua interpretação niilista. "Nada", de acordo com a origem etimológica portuguesa e castelhana, do latino “nulla res nata”, assinala o inato, o não nascido, o não originado e não produzido da natureza primeira e última de todas as coisas, bem como a sua não reificação, o não ser “coisa”, e a sua não entificação, o não ser “ente”. Assinala ainda o transcender toda a determinação e manifestação e não lhe convir nenhum dos predicados onto-lógicos possíveis: ser, não ser, ser e não ser, nem ser nem não ser. Em verdade, o nada nem sequer é nada. Assinala-o a palavra portuguesa e castelhana “nonada”, sinónimo da “insignificância” que permite toda a emergência de sentido e significado. "Tudo" indica quer a plenitude em acto disso que é sem determinação, quer a totalidade ilimitada das manifestações possíveis do que, sendo de todas inseparável, não menos a todas, por sua não determinação, engloba e transcende. Este nada não é inerte e estéril, sendo o espaço matricial e fecundo de toda a manifestação, que todavia, sendo dele inseparável, jamais se entifica ou reifica como isto ou aquilo, com características e determinações intrínsecas. A natureza da manifestação é a de meras aparições-aparências que a cada instante evanescem e se libertam de o ser, sem origem, fim ou duração.

4. Sendo a natureza primordial de tudo inacessível a qualquer forma de conhecimento, representação e discurso, é-lhe todavia inerente um saber-sabor de experiência feito. Este saber-sabor-experiência é o estado natural, primordial, comum e espontâneo de todos os seres aparentes, na plena consciência fruitiva da sua natureza autêntica, livres de todos os conceitos e determinações, incluindo os de “serem” e de serem “seres”. Esta consciência fruitiva é sem sujeito, nem objecto, nem características: por isso infinita e inefável, sem centro nem periferia, sem interior nem exterior, sem entidade nem referência a si ou a outro, sem concepção nem intenção. Sem auto ou hetero-relação, intelectual, reflexiva ou outra, sem identidade-diferença, sem mesmidade-alteridade, não é para si, livre de toda a auto-apreensão e auto-apropriação. A consciência inerente à natureza primordial não é de si como um si ou um ser, como sendo ou não sendo isto ou aquilo. Refractando o seu saber-sabor-experiência pelos limites do pensamento e do discurso, as características menos impróprias para indicar a sua total ausência são vacuidade-plenitude e liberdade-infinidade. Isto não contradiz uma inerente sabedoria experiencial que, sempre que confrontada, como veremos, com qualquer forma de limitação e sofrimento, espontaneamente se manifesta como uma infinita sensibilidade amorosa, compassiva e libertadora.

5. Tu, que escreves e lês, importa que quanto antes o recordes, experiencies e vivencies, “és” em verdade, no mais fundo sem fundo de ti mesmo, e sem qualquer identidade ou diferença, a natureza primordial de tudo e o seu saber-sabor-experiência inerente, isso para além do qual nada mais há, com toda a sua potencialidade sensível, amorosa e compassiva. Sem características, não és tu, porque não és nem não és isto ou aquilo. No mais íntimo de ti, és livre de ti, livre de ser ou não ser e por isso bem-aventurado e infinito. Um não sei quê, insuperável e irredutível, estranho e entranho a tudo, que a todas as coisas abrange e engloba. É nessa imensidão incriada de ti sem ti que tudo acontece e se manifesta: sempre superabunda e nada lhe falta, nem sequer o nada. É essa afinal a verdadeira natureza e excelência de todos os seres, seres aparentes como tu, pois ser é apenas aparecer como tal, numa aparência de determinação sem qualquer essência, substância ou entidade intrínseca.

(Excerto inicial de Da Natureza primordial, da Mundanidade e da Saudade. Teoria e prática de libertação, inédito em fase de conclusão)

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