segunda-feira, 27 de maio de 2013

segunda-feira

Hoje é segunda-feira e as velhas contam histórias de quando eram crianças.
Há buracos no asfalto a dar conta da terra que um dia foi fértil. 
Não há andorinhas a cantar no meu quintal. Os galos estão presos, longe da capoeira.
É segunda-feira, sempre à segunda-feira.
Não há um relógio parado a dar conta do tempo sem hora marcada. 
Nasce um pinguim sem hora de parto. Morre um falcão sem atestado deóbito.
Todos os dias, em cada dia, centenas de papeis determinam a vida.
Um homem sofre de amnésia e decreta que o tempo é ausente.
Tão próximo do velho que diz que a morte é presente. Encontra o sorriso de um dia que já não existe.
Todas as segundas-feiras nascem e morrem à segunda-feira.
O tempo de vida de uma borboleta.
O homem fraccionou o tempo. Desprezou o instante fugaz de um sopro que se desdobra noutro.
Adormece a noite na esperança de um novo dia.
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo e segunda outra vez.

sexta-feira, 17 de maio de 2013


julgava que tinha perdido um Trabalho Prático de MÉTODOS QUALITATIVOS DE INVESTIGAÇÃO SOCIAL - 9º. semestre -
Universidade de Évora, sendo Professor da Cadeira o distinto Mestre Prof Adrião (ou Adriano - o senhor que me perdoe) Rodrigues.
além dos Métodos Qualitativos, que me agradavam sobremodo e onde colhi nota, também já não sei se 17 se 18, fundamentalmente com base no tal poema que julgava perdido na voracidade dos anos e encontrões da vida

Arrancava com o seguinte título:
A INSTITUIÇÃO REPRODUZ A SOCIEDADE
sendo a instituição uma Fábrica de Tomate onde eu trabalhava

" não sei até que ponto é possível/desejável planificar o trabalho. A
planificação, a racionalidade do trabalho, a burocracia ao fim e ao cabo, só dão má qualidade à vida:
devíamos aceitar esta situação como transitória e ver de que modo poderia ser:
e penso que o exemplo está na maneira como algumas crianças brincam. É daí que o trabalho dos adultos tem que partir.

(da entrevista de MariaIzabel Barreno a " o Jornal de Letras Artes e Ideias - edição de 26 de Maio de 1981)

O PRAZER DA FÁBRICA

penso que o prazer na Fábrica
só é possível na ganga suja de óleo
nas mãos amolecidas
da pasta cor-de-carne dos pimentos

da carnação da massa que escorrega por
túneis de metal Inox
serve as naves como artérias
de ladrilhos
e transborda se derrama
como um corte de faca
e é sangue na limpeza do piso
e cor nas batas muito brancas das mulheres

possível o prazer da Fábrica
só dentro do vapor das nuvens brancas
que nascem nas caldeiras de alumínio

de onde emergem figuras ferrugentas
mas alegres
bons adamastores
que têm cão
mulher e filhos

por cima das bancadas dos mecânicos por gosto
elas próprias omelette- au- rhun dos óleos entornados
da massa consistente que aplacenta as peças
vindas dos cacifos
sopa-de-cavalo-cansado onde se encostam
por gosto
os cotovelos

nas tarefas exatas feitas com amor:
conduzir camiões enroscar parafusos
mudar as flores das jarras rotular produtos

nas tarefas exatas feitas alegria
no colher das amostras no rigor das análises
na limpeza doméstica
das tulhas e dos silos

prazer na Fábrica
não mais na datilógrafa que luta por aumentos
no capataz que exulta
quando o chefe pelo Natal
o presenteia com um mágico envelope

A FÁBRICA

a Fábrica é cercada
com arame farpado

tem uma entrada que é um portão enorme
com a casa- dos- guardas frente ao barracão das bicicletas

e um pastor-alemão que é tão simbólico
tão apenas simbólico
como a vedação de arame-farpado
e a casa-dos-guardas frente ao barracão das bicicletas

sim
que a vedação de arame-farpado é fácil de transpor
nada custa franquear o portão enorme
o pastor-alemão nunca morde
nem ladra a ninguém
os guardas
estão invariavelmente bêbedos
mesmo no momento em que se rendem

parece então
que seria mais coerente plantar flores
e árvores em redor
retirar o ar de manicómio
de parada militar
de campo-de-concentração que toda aquela
simbologia podre lhe empresta

assim os operários
chegariam contentes para exercer o seu trabalho
e não para o cumprir

teriam pássaros em volta
e não os tecnocráticos pardais

( há pardais nos Quartéis nos Hospitais
nos Pátios dos Tribunais
nas Paradas das Prisões
nas estátuas dos generais
nas frinchas dos saguões)

pássaros dizia em volta
os esquivos melros os térreos piscos tímidos
andorinhas domésticas fariam
ninhos nos ângulos das naves
os cartaxos brincariam nas peças

não é possível o prazer na Fábrica
onde as coisas engrenam porque são determinadas
comandadas por senhores de batas
  • que produzem a ORDEM

    reprime-se em nome dessa coisa
    ameaça-se com despedimentos
    quem não tome a pílula vendado

    produzir é o lema
  • produzir conforme os cáculos das máquinas
segundo estalecem
compromissos exteriores
:
Ces ; EFTAs ; outras siglas
tão acrílicas tão ásperas
tão “made in”
- filhas dessa coisa
a que chamavamos ORDEM

A ORDEM

vem sempre de cima
tal qual a chuva as trovoadas os coriscos
a caliça dos tetos
as cagadelas incómodas dos pombos

mais de cima sempre mais de cima
mais do que por mais de cima se consiga imaginar

em última instância
a ordem vem de Deus

então não se discute

o chefe-de-fabrico é deus em relação ao capataz

frente à sua imagem
este se recolhe
genuflete
persigna-se
perturba-se
recolhe-se a si próprio

toma a Ordem como quem toma a hóstia
entrelaça os dedos transpirados
semicerra as pálpebras
com os olhos
melancolicamente virados ao vazio

adivinha
para além daquilo que lhe é dado:
deus diz dez
- o capataz já sonha vinte ou trinta

DEUS

deus não dorme
não come – alimenta-se de néctar
algum néctar do Olimpo
rodeado de anjos e arcanjos
  • que raramente são
seus filhos ou mulher

manda pôr na conta
e ordena que enderecem
ao economato celestial

não toma bica
nem bagaço

-liba
  • não defeca
    nem micta

    - segrega

    os operários veem deus
    de baixo para cima
  • respeitam-no num código
  • que se chama de há milénios
  • mandamentos
  • dos quais o primeiro é o seguinte
    :
    amar ao chefe sobre todas as coisas
    e os restantes
    de um teor mais ou menos semelhante

    assim é de facto:
    o chefe é o sustentáculo da Fábrica
  • enquanto unidade de produção
do operário enquanto peça dessa máquina

por inerência
sustentáculo das famílias todas
de todo o operário que há na Fábrica

há pois
que amar ao chefe sobre todas as coisas

o POTLACH

a mulher-da-limpeza é quem
tem menos para dar e quem dá mais

porque o faz diariamente a todos
para receber de todos (se possível)
um poucochinho mais – que cada um
isoladamente tem para lhe dar

a secretária pede-lhe do Bar um Trinaranjus

se as coisas correm bem a nível da chefia
o Trinaranjus que lhe traz a mulher-a-dias serve
se as coisa correm mal
  • não serve

    porque tem borbulhas – se a mulher-a-dias trouxe com borbulhas
    porque não tem borbulhas
    se a mulher-a-dias trouxe
    um Trinaranjus sem borbulhas

    é pretexto pra a reprimir de maneira violenta
    decisiva
dita exemplar
podem apontar-lhe a rua
o retorno à enxada
guardada na pequena dependência do quintal

a mulher-da-limpeza é meiga
solícita
servil
subserviente
vendível
desodorizada assética
- um produto

dá quanto pode dar
à Secretária da Administração
que por seu turno porfiará em dar
aos seus administradores
alguma coisa ainda
às suas companheiras de trabalho

todos nós – operários
técnicos administrativos
prodigalizamos em ofertas diárias
aos nossos superiores

que lambem os beiços
e tudo nos devolvem
numa grandiosa festa pelo Natal

há festões
e árvores enfeitadas em todos os recantos
prendas em caixinhas decoradas para os nossos filhos

e mesas recheadas de leitões assados
-secos como múmias – em postura
de esfinge de Giseh

são nomeadas as pessoas
que recebem os prémios
galardoados os assíduos
os produtivos
em suma – os integrados

quiçá os colaboradores mais íntimos
os tratadores
dessa pomba cinzenta
a que chamámos ORDEM

esta a grande Festa o supremo Ofício
a grande celebração
- o Facto Social Total
em que os deuses se misturam com os homens
o nosso merecido
reconhecidamente
POTLACH

assim de há anos – desde que a Fábrica respira
até que outro processo nasça
na raíz do sistema cariado

penso por exemplo em produção
à maneira (simples)
de como (algumas)
crianças brincam


António J. C. Saias
nº. 94 - 9º semestre