O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 30 de maio de 2011

Converso com a preguiça
tento convence-la a passear-se
pela praia – sozinha

quinta-feira, 26 de maio de 2011

quarta-feira, 25 de maio de 2011

sei do mar, sei das trevas, sei da vida;
sei que demorei muito para lá chegar.

POLÍTICA

esta noite vou a comício
do meu partido

é um pequeno partido
assim eu em tudo
assim meu Fado

eu até diria
entre o alegre e o irado
que faria sentido
em vez de partido
lhe chamar
estalado

cá bem no fundo
gosto do meu partido
porque não aspira a ser
nem o maior
nem o melhor do Mundo

domingo, 22 de maio de 2011

lâmpada - mas não acendo

os deuses fizeram-me imperfeito
- talvez um pouco em excesso -

como em todo o processo de fabrico
há sempre uma percentagem
de produto
com defeito

sexta-feira, 20 de maio de 2011

fosses tu
o meu desejo
eu seria o compasso
em que respiras

em cada beijo
um sopro suave
feito da vontade
de outro beijo


fosses tu
o meu desejo
eu seria o vazio
que se completa


fosses tu
quem eu sou agora
um corpo suado
molhado, em ti
foz de um novo rio.

"Nem uma coisa boa é tão boa como nada" (F F.)

Dino Valls, "Mutus Liber", 1996

Na espada da ousadia, e no garbo de seu manejo, aqui deponho em colagem, com as mãos ainda enregeladas de seu arrepiante bisturi de beleza e de verdade, palavras, caídas como folhas prematuras, de certo ferrolho não imigo, entreaberto em seu mesmo fechar-se[-me] :

"Nem uma coisa boa é tão boa como nada".

Talvez porque "só os frívolos não julgam pelas aparências".

“Apanha [pois] o cavalo vigoroso do teu espírito” ...



(... faustas palavras!)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Expanso


Ei-La
tudo É

nada no nada

condenso
de
mínima substância

o poema

quarta-feira, 18 de maio de 2011

SENTADO NUMA SALA ÀS ESCURAS



Sentado numa cadeira na sala às escuras. Uma perna para cada lado, os braços lassos. Um nervosismo parece inspeccionar cada contra-luz numa maldição
O que está de cu sentado cisma como versos de Ajax por entre intervalos a roerem unhas. E transpira o escuro, MEMÓRIAS. Intersecção rutilante, nada menos.

Sentado ao abandono absoluto da compreensão numa púbere e permanente existência de Ser, como são, uma fileira interminável de bonecos sachados da terra porca com uma única frase pendurada da ponta da língua, caindo como gota de cuspo:

“nada menos que o céu”

Quem estava sentado deitar-se-á através das casas construídas no pó e fechadas por dentro, vogando etereamente num sono incomodado pelas dúbias irisões de alguém. Os pés dum homem sentado devorados pela luz, se a houvesse.

Mas quer o sono, quer a escuridão, almejam ser parte da sóbria forma. Em boa verdade, já o são. Seguindo por quaisquer recortes de sombra do acto, as definições dum carvão grosso gizam estes tubérculos saídos da terra a pontapé selvagem.

Postos numa cadeira, aparentemente, ou deitados. Rebolam ocos a precisar de amparo a muletas cinzentas. Que a cadeira tomba sempre num crepúsculo que se adiantou muitos anos; as muletas fizeram cair o coxo; e sono ingénuo, engravida em pesadelos de baixa estirpe.

Pois não há lugar para relaxar nesta sala de espera sem ser pontos interrogados até ao nulo, os pontos que sussurram deixas na casinha do teatro para o postiço Ajax.

Umas composições mal amanhadas, não obstante, que se lhe estivessem a definir a mentira, porventura seriam menos ousadas, menos rasas; pois aquilo que nos força está brincando com a omnipotência do momento para o qual nos espojamos. A mentira da anulação é o sossego das tropas que a querem.

Quando sobras frouxas a cabecearem nas injúrias, o descanso do fundo se complementa pela certeza de lata e pela sombra. Já nem adivinho porque me sentei, se estou no chão, acossado por leoninas manifestações votadas, espreitado por coveiros ansiosos de trabalho. Aqui é o lugar do sonho e do cadáver onde se atenua o ante-facto, e se abana compreensivamente a cabeça para ante-passado, mesmo que o presente, zombeteiro, se valide sem ajuda ou aceitação de cadeiras desocupadas.

Quando este repouso consiste numa ilusão de amanuense onde o próprio repouso nos faz estar sentados, para numa apatia violenta não nos dar a vontade de se levantarem pelo menos os braços, e se arregaçarem as mangas,

Cadeira caída para trás, sono perturbado, lençóis mexidos por um terror bêbado de altas horas

Para a vida, figurada, consistir assim na verdadeira tragédia do nosso pleno direito. Para o destino, manifesto de pé, corajoso pobre, encaixar e aprovar a necessidade da mentira amiga que lhe chega com descansos palpáveis e alheamentos de prostituta coroada...

Ao estar assim, herói de um Sófocles delirado, para negociar, no mínimo, com um aspecto de paixão que lhe custe, deveras.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

CANCRO

amputaram-lhe uma perna
mas mesmo assim caminha

-socorre-se de canadianas

tiraram-lhe um pulmão
mas mesmo assim respira

nada na piscina com um ar feliz
em vez de duas - com uma barbatana

que raio de cancro é este
que mesmo assim resiste

os médicos não lhe dão
mais de uma semana

felizmente há anos
que os médicos não dão
a este resilente cancro
mais de uma semana

Edd'ora addio... — Mia soave!...





Aos meus Amigos d'Orpheu


— Mia Soave... — Ave?!... — Almeia?!...
— Mariposa Azual... — Transe!...
Que d'Alado Lidar, Canse...
— Dorta em Paz... — Transpasse Ideia!...

— Do Ocaso pela Epopeia...
Dorto... Stringe... o Corpo Elance...
Vai À Campa... — Il C'or descance...
— Mia soave... — Ave!... — Almeia!...

— Não dói Por Ti Meu Peito...
— Não Choro no Orar Cicio...
— Em Profano... — Edd'ora... Eleito!...

— Balsame — a Campa — o Rocio
Que Cai sobre o Último Leito!...
— Mi'Soave!... Edd'ora Addio!...


Ângelo de Lima

sábado, 14 de maio de 2011

RIO de NADA


há que ter cuidado

não és novo

és um rio cansado

próximo da foz


já quase Mar

já quase nada

manso rio anónimo

onde raro chega

a enxurrada


não és tu que matas

para trás ficou

o ímpeto das ondas

próximo do Mar

és uma toalha

de esconder cadáveres

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Deixa que o rio se estreite. Conta-me tudo, sem pressa. Conta-me o resto.As casas decimais estão sempre a fugir.esquece a vírgula,  coloca outro zero. as contas nunca se acertam. Deixa-me agora descansar nesse teu estar. Devagar, estar em ti. No cheiro que adormece preguiçoso em teu corpo, Deixa-me estar entre a vontade e o desejo de continuar a estar. Deixa-me agora, que durmo  em silêncio enquanto me esqueço...

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Política - Partido pelos Animais e pela natureza candidata-se em 5 de junho - RTP Noticias, Vídeo

Política - Partido pelos Animais e pela natureza candidata-se em 5 de junho - RTP Noticias, Vídeo

A minha entrevista de hoje no Jornal da Tarde da RTP1. Passará agora, no Jornal da Noite, um resumo. Amanhã, 6ª feira, deve sair uma entrevista no semanário "Sol". Há uma Alternativa e uma Diferença na vida política nacional, que não fala só de economia e finanças. Passem palavra e bem hajam! Havemos de fazer de Portugal um país a sério: Mais Valor aos Valores!

sábado, 7 de maio de 2011

Só tu poeta, escutas a prenhe terra, adivinhas
quando um fruto vem em queda livre e atiras a tua vida
estendida como lençol para o amparar. só tu poeta, nasceste
na colisão do sol e lua, maturas a semente feito um outono ao chegar,
tão crente como a terra a fechar uma ferida. só tu poeta, corres
atrás da imortalidade, porque sabes que por detrás das palavras
estão outras palavras, que são as tais que brilham no útero ardente
do pensamento.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tradução livre de um trecho de Mallarmé




Mais ou menos o que segue: Sons da meia-noite - a meia-noite em que os dados devem ser moldados. Igitur desce as escadas da mente humana, vai às profundidades das coisas: como o " absoluto, ainda vestido de fato" que é. centro inoperante das túmulos pisados em cinza de cigarro barato (sentimento, nem mente). Relata a predição e faz o gesto, grande gesto apanhado das sombras de um peru. Indiferença. Assobios de símio nas escadas. " Você é errado, sumamente errado nesses animais que encena. Você é errado": Emoção do constatado, som de sapatos velhos a descer uma avenida vazia. O infinito emerge da possibilidade, ainda que raptado das garras do absurdo, que você negou. Você em matemáticos expirou, insultado por Pitágoras, que logo a seguir se emoldura num chouriço de palhaço bêbado, - eu sou o absoluto projetado. Eu devia terminar o ano em Infinidade. Simplesmente palavra e gesto, sombra, contornos rocambolescos de animais irracionais. Quanto para o que eu lhe estou dizendo, a fim de explicar minha vida pouca coisa acrescenta senão ao clássico conjunto, eu conquistei os paradigmas. Nada permanecerá de você - o infinito em escapes da última família, e o que sofreu dela - espaço velho - nenhuma possibilidade. Raparigas nascidas em bairros de lata, ainda ladylike nas suas maneiras de produzir este poema. A família era direita para negá-lo - sua vida - de modo que permanecesse o absoluto. Era este ocorrer nas combinações do frente a frente infinito com o Absoluto, uma coisa desmedida, insana de despenteada pelo vento soprado. Então necessária somente - a ideia extraída. Loucura de Vantajoso. Um dos atos do universo foi cometido lá apenas. Nada mais, a respiração permaneceu, o fim da palavra e gesto unido, casulo furado por borboletas loucas querendo fugir – fundos para fora na vela de ser, tão ela que não eram, por que tudo foi. Prova. (Pense nisso)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Serpentes com Penas

Dizer-se que uma prisão é um local para se expressar liberdade é, ainda não estar liberto. E não estar liberto é, nada expressar no que à liberdade diz respeito.


Eu posso partilhar convosco este belo texto:


As I said before, my purpose is to make men unconditionally free, for I maintain that the only spirituality is the incorruptibility of the self which is eternal, is the harmony between reason and love. This is the absolute, unconditioned Truth which is Life itself. I want therefore to set man free, rejoicing as the bird in the clear sky, unburdened, independent, ecstatic in that freedom . And I, for whom you have been preparing for eighteen years, now say that you must be free of all these things, free from your complications, your entanglements. For this you need not have an organization based on spiritual belief. Why have an organization for five or ten people in the world who understand, who are struggling, who have put aside all trivial things? And for the weak people, there can be no organization to help them to find the Truth, because Truth is in everyone; it is not far, it is not near; it is eternally there.

Mas tal como vos não consigo provocar vontade, em nada afetarei a vossa liberdade.
Da prisão vos escrevo. Porque vos escrevo. Sejam palavras minhas, sejam citações.

Pensando... Mas ainda preso na necessidade da pontuação. (outra vez!) (e outra vez)! outra vez outravez fjk

quando fazia a açorda
e cortava o pão
notei que havia ali
uma espécie de alucinação

esquizofrenia?
não sei
a mim pareceu-me
a "cara" de um LEÃO

gostava de saber
a tua opinião
:
"cara" de LEÃO?
esquizofrenia?
alucinação?

ou simplesmente
PÃO?

terça-feira, 3 de maio de 2011

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Benjamin

Na partida, Benjamin avisou-me que teríamos de fazer uma paragem. Perguntei onde e porquê, mas Benjamin pediu-me paciência.

- Há coisas que não se explicam, Hannah...

O nosso destino era vago:  alcançarmos o Extremo Oriente. Vi homens baixos, vi outros tão altos que mal lhes reconheci o contorno da cabeça. Dormi debaixo de árvores gigantes que me abrigaram nas noites chuvosas. Sem pressa, deixei que o corpo se adaptasse ao calor húmido da floresta e ao ar rarefeito das montanhas. Acompanhei o sol, e a noite foi sendo sempre noite no meu corpo viajante. Alguns dos nossos companheiros ficaram em Goa, outros seguiram caminho para oeste. Eu e Benjamin, continuámos a caminhar para leste.

Benjamin acordou cedo. Retirou da mochila um pião rendado, em prata.
- O que é isso, Ben?
- É a encomenda que tenho de entregar...
Já tinha esquecido. Há tantos meses a viajar, só agora dei conta que o meu amigo limpava a peça todas as manhãs.

Lembro-me do pião que o meu pai me deu, num passe de mágica rodopiava, ganhava velocidade. Da pequena peça de madeira só vislumbrava o tempo que voava. Uma bruma fina envolvia o brinquedo que parecia imóvel, centrado em si mesmo. Depois, cansado, cambaleava como se estivesse bêbado, acabando por cair tombado de lado.

Memórias que o tempo roubou e tu, Benjamin acabas de me devolver.
- Ben, lembras do dreidel*?
- Em cada face uma letra do alfabeto hebraico: Nun, Gimmel, Heh and Shin...
- "Nes Gadol Hayah Sham" ("Um grande Milagre Aconteceu")...

Benjamin é meu amigo infância. Na escola aprendemos a ler, cantámos as letras do alfabeto hebraico, uma a uma a formarem palavras encantadas. Na escola, cantou comigo no Pessah* - Ma Nishtaná halaila hazé micol haleilot? (Porque esta noite não é em nada igual a todas as outras noites?).

- Lembras, Ben? Hailala hazé...

Depois da escola primária, mudei de cidade, cresci longe de Ben. O yiddish foi sendo esquecido e do hebraico só sei escrever o meu nome: הַנְנַה
Um pequeno pião de prata lembrou-me criança.
- Isto é um pião estranho, Ben...
Benjamin sorriu.
- Nem tudo que parece é, Hannah.

Continuámos a viajar, agora junto ao mar. Em cada aldeia, um novo peixe. Nossa pele mudou de cor. Meu corpo salgou no corpo de Benjamin. Semente de um novo amor.
- Por onde me levas, Ben?
Silencioso, Benjamin calava meus lábios na sua boca sempre entreaberta.
À  noite casavamos as nossas vontades. De manhã, ríamos delas.
- Para onde vamos, Ben?
- Sempre a oriente, Hannah...
Quando o corpo está apaixonado pede o corpo do amado. Sem ele, parece morrer. Com ele encontra a morte, feliz, num breve e longo instante.

O dia encontrava a noite. A noite amanhecia. Benjamin, todas as manhãs, delicadamente limpava o pião de prata. Quinze minutos diários, focados na renda fina.
- Que pião é esse, Ben?
- Em breve, Hannah, vais saber. Quando a hora for hora...
Benjamin nunca teve pressa com nada. Quando dança, rodopia, sempre centrado no eixo. Quando pára, tomba devagar.

Um longo abraço marcou o reencontro com Leo, nosso companheiro de viagem.
- Como vieste aqui parar, se seguiste para ocidente? - perguntei
- Fiz um desvio e outro, pelo caminho. Perdi-me, encontrei-me. Entre um e outro, parei...
Os meus amigos sempre foram assim. Entre o sim e o não … existem.

Com Leo, fomos ficando na aldeia à beira-mar. De madrugada, acordavam e partiam com os pescadores. À tarde, regressavam com o jantar. Cansado Ben, salgava meu corpo, lentamente.

- Está na hora de partir, Hannah...
- Quando?
- Amanhã. Não leves nada contigo, a não ser a roupa que trazes vestida. Uma mochila leve, com um pequeno agasalho...
- Mas o que faço com o resto?
- Dá a quem precisa, Hannah. Alivia o peso. Não precisas de mais nada, senão do teu corpo leve.
Contrariada, deixei minha mala de viagem. Nela, meus sapatos novos, livros e roupas usadas. Enrolei meu diário velho no casaco que guardei na mochila.
- Hannah, o que viveste está desenhado no teu corpo...
- Tenho medo de esquecer, Ben.
Nessa noite, adormecemos abraçados. Senti seu coração, ritmado com o meu. Um ar morno, manso, viajou entre as nossas bocas.
Antes do sol nascer, despedimo-nos de Leo. Um abraço prolongado, silencioso, marcou o nosso adeus.

Antes, Ben afagou de novo o pião. Desta vez, enrolou-o cuidadosamente num longo pano de linho branco. Deu voltas e voltas, até que o pião deixasse de ser a peça de prata rendada e não fosse mais que uma trouxa de pano. Em seguida, guardou-o na sua velha mochila.
- É esta a tua única bagagem, querido?
- Sim, Hannah...
Sei quando Ben não quer falar. Aprendi com ele a gostar de cada intervalo pausado, dar espaço a todos ruídos, encontrar o som do vento, identificar o canto diferenciado de cada pássaro, ou simplesmente ouvir o som mudo do silêncio que se alonga no outro.

Caminhámos calados, passo a passo, entre aldeias. Caminhámos de mãos dadas, sem nunca nos tocarmos. Ben seguia ao meu lado, tranquilo. Uma paz estranha tomou conta de mim.
Poucas semanas antes, soube do falecimento da minha avó. Meu coração ficou pequeno. Apertado, encontrou a dor. Chorei de mansinho, junto com a noite - toda a noite. De manhã entreguei ao mar a saudade que sinto dela. Desembocou no oceano, espalhou-se por todos os mares, encontrou outras águas, doces e salgadas, irrigou o campo, semeou a terra. Até já, avó.

O sol disse adeus antes do anoitecer.
- Vamos descansar. Ainda temos umas horas de caminho.
Ben sentou-se em cima de um pedaço de pedra. Eu sentei-me no chão, junto a ele. Com a cabeça em seu colo adormeci.
- Acorda, Hannah. Temos de seguir...
Em que instante mudamos? Uma dor estranha aparece no peito, como uma flor que desabrocha, a mesma que nos acolhe quando nascemos. Quantas vezes mudamos, antes de morrermos?

Quanto mais rápido rodopia o pião, mais imóvel parece ao nosso olhar.
- Ben, para onde nos levas? - perguntou meu coração baixinho. Uma nova flor desabrochava em meu peito.
- Para um lugar sem nome, que te acolhe sem nada te perguntar. - respondeu-me, sem falar.
Já passava da meia-noite quando chegámos a esse lugar, que nada pergunta, nem quer saber. Onde a lua nasce e volta a nascer, todas as noites. Dia após dia.

Não me lembro se vi alguém. A aldeia é pequena. O chão de terra batida, vermelho. As casas pequenas, brancas. Em todas, chega-se à sala depois de descermos três degraus. Parece que nunca saímos do mesmo lugar. Como o pião, veloz. Imóvel.

Benjamin entrou em três casas. De cada uma trouxe uma coisa. Na primeira, um cobertor, na segunda duas tigelas de arroz, na terceira ervas para o chá. Convidou-me a entrar na quarta casa da vila.
- Descansa agora, Hannah. Vou ter de sair.

Quieta, vi Benjamin abrir a mochila, e tirar a trouxa branca de linho. Antes de sair, abraçou-me carinhosamente. Calou meus anseios em seus lábios. Doce, cantou baixinho, Ma Nishtaná halaila hazé micol haleilot...
- Até já, pequena Hannah...

Cansada, adormeci sem nada questionar. Meu corpo colava ao colchão de algodão. Um tapete vermelho, cobria o chão do ar fresco da noite. No ar, o cheiro da madrugada. Meu corpo cansado, fugia da dor anunciada. Não me lembro da cor do céu. Sei das estrelas a dançar de par em par. Não me lembro de nada até aquela manhã, quando acordei quase sem ar. Uma flor nascia no ventre, teimava em desabrochar. Com medo, eu não permitia.
Saí de casa, apressada.

- Ben, qual foi a casa que te abrigou nesta noite que não regressaste ao corpo da mulher amada?
Como resposta, um silêncio profundo pesou no meu corpo.
- Ben! - perguntei sem descanso, numa terra que nada questionava, sequer se importava em saber a resposta.

Uma nuvem branca, saía da chaminé da casa que nos deu de comer: a casa do meio.
Corri, sem pensar. Em algum lugar do meu ser, eu sabia a resposta. Essa que adivinhei desde o primeiro dia da nossa viagem. Alcançar o extremo oriente, era o nosso destino.

Onde fica o extremo do nada? Caminhámos, sem destino sabendo dele, desde que partimos. Onde fica a chegada, se não existe o fim? Se nada existe, explica-me esta dor que dilareça o meu peito, Ben!

A casa tinha a porta aberta. Três degraus levam o visitante à sala. Cheira ao ar manso, morno da boca de Ben. O vento entra e faz rodar um pião de prata rendada. O pião espalha pelo ar, um pó branco, fino, formando uma nuvem branca, por toda a sala. A mesma que vi sair da chaminé.
Aspiro o ar.  “Nes Gadol Hayah Sham”

- Ben! - meus olhos choram, meu corpo treme entre a alegria e a tristeza, canto:



Esperei-te em silêncio,
num recanto qualquer
da minha existência 
Esperei sem descanso
tantos abraços dei
enquanto partias
beijos vencidos
na despedida
fosses tu de pedra
inventava o amor eterno
esse que o tempo gasta
sem que os olhos vejam
Divino é o pó
em que tornas ao mundo
na terra, no ar, nos oceanos
Multiplicas-te em todos
em cada um

Esperei-te em silêncio
num recanto qualquer
No meu corpo salgado

Estás em tudo e em todos
Eterno é o teu descanso
Até sempre, Benjamin.


* Dreidel - (Yiddish; sevivon em hebraico) é um pequeno pião quadrado comumente dados as crianças durante Hanukkah (festa que dura oito dias e comemora a reedificacão do templo de Jerusalem feita por Judas Macabeu).

* Pessach -  também conhecida como Páscoa judaica celebra e recorda a libertação do povo de Israel do Egito, conforme narrado no livro de Shemot (Êxodo).