O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 31 de outubro de 2009

viva a revolução

1 de novembro 17-18 horas

atelier de fechaduras
setúbal
contamos contigo

dona MARTA


(quando a temática gira em torno de animais
- para o Paulo Borges pelo seu simpático movimento
em defesa destes)

dona MARTA

dona MARTA é gorda
é gorda que se farta
tem um casaco de marta
-pô-lo arrepia

dona MARTA é gorda
é gorda que se farta
tem um casaco de marta
pô-lo arrepia

arrepia a memória
de MARTA morta
que está farta
de cobrir
tanta marta vazia

Caranguejo-samurai

.
(fonte: Google images)
.
Deixem-me contar-vos uma história sobre uma pequena frase musical da vida na Terra.
.
No ano de 1185, o imperador do Japão era um menino de 7 anos chamado Antoku. Ele era também o chefe nominal de um clã de samurais, os Heike, que travavam uma longa e sangrenta batalha com outro clã, os Genji, por ambos se acharem com direitos ancestrais ao trono imperial. O encontro naval decisivo entre os dois cIãs, com o imperador a bordo, deu-se em Danno-ura, no mar do Japão, a 24 de Abril de 1185. Os Heike eram numérica e tacticamente inferiores; muitos pereceram na batalha e os sobreviventes atiraram-se em massa ao mar, afogando-se. A senhora Nu, avó do imperador, decidiu que nem ela nem Antoku seriam capturados pelo inimigo. O que se seguiu vem contado na História dos Heike:

«O imperador tinha 7 anos, mas parecia muito mais velho. Era tão belo que parecia irradiar um halo de luz e o seu longo cabelo negro caía solto pelas costas abaixo. Com a surpresa e a ansiedade estampadas no rosto, perguntou à senhora Nu: ‘Para onde me levas?’ Ela voltou-se para o jovem soberano, com as lágrimas correndo em fio, e [...] confortou-o, atando-lhe os longos cabelos com as suas vestes cor de pomba. Com os olhos cegos pelas lágrimas, o pequeno imperador juntou as delicadas mãozinhas. Voltou-se primeiro para oriente, despedindo-se do deus Ise, e depois para ocidente, recitando o Nembutsu [uma oração ao Amida Buddha]. A senhora Nu tomou-o nos braços e, dizendo ‘Nas profundezas do oceano está o nosso capitólio’, afundou-se finalmente com ele entre as ondas.»

Toda a armada Heike foi destruída só sobrevivendo quarenta e três mulheres. Estas damas da corte imperial viram-se forçadas a vender flores e outros favores aos pescadores da costa, perto do palco da batalha. Os Heike praticamente desapareceram da história.

Mas o miserável rebanho das ex-damas da corte e dos filhos que tiveram dos pescadores estabeleceram um festival em comemoração da batalha, o qual se realiza no dia 24 de Abril de cada ano.

Os pescadores descendentes dos Heike vestem-se de serapilheira e, com a cabeça coberta de negro, dirigem-se para o santuário de Akama, que contém o mausoléu do imperador afogado, onde assistem a uma peça que narra os acontecimentos que se seguiram à batalha de Danno-ura. Durante séculos, o povo imaginou ver exércitos de samurais que tentavam em vão esvaziar o mar, para o limpar do sangue, da derrota e da humilhação. Os pescadores dizem que os samurais Heike ainda vagueiam pelos fundos do mar do Japão — sob a forma de caranguejos.

De facto encontram-se neste local caranguejos com marcas curiosas nas carapaças, marcas e recortes que se assemelham de um modo perturbante ao rosto de um samurai. Quando apanham estes caranguejos, os pescadores não os comem, mas voltam a deitá-los ao mar, em comemoração dos trágicos acontecimentos de Danno-ura.

Esta lenda levanta um problema interessante. Como é que a cara de um samurai foi gravada na carapaça de um caranguejo?

A resposta parece ser que foram os homens que fizeram a cara. As marcas da carapaça dos caranguejos são hereditárias. Mas nestes bichos, tal como nas pessoas, existem muitas linhas genéticas.

Suponhamos que entre os antepassados longínquos deste caranguejo surgiu por acaso um cuja carapaça lembrava vagamente um rosto humano. Já antes da batalha de Danno-ura, os pescadores teriam provavelmente tido relutância em comer um caranguejo assim. E ao voltar a deitá-la ao mar, eles iniciaram um processo evolutivo: se fores um caranguejo de carapaça vulgar, os homens comem-te — a tua linha deixará poucos descendentes; se a tua carapaça se parecer, por pouco que seja, com uma cara, eles deitam-te de volta ao mar e poderás ter mais descendentes.

Os caranguejos investiram substancialmente nas marcas das carapaças. Com o passar das gerações, tanto de caranguejos como de pescadores, os animais cujas carapaças mais se assemelhavam a um rosto de samurai sobreviveram preferencialmente, até que acabou por se produzir, não só uma face humana, não só uma cara de japonês, mas o rosto feroz de um temível samurai.
Nada disto tem o que quer que seja a ver com o que os caranguejos querem. A selecção vem do exterior. Quanto mais te pareceres com um samurai, melhor para ti. A seu devido tempo, acabou por haver grandes quantidades de caranguejos-samurais.
Carl Sagan in Cosmos

Emoções


“Vacas felizes produzem mais leite, de acordo com investigadores da Universidade de Newcastle, no norte da Inglaterra.

O animal que recebe um nome e é tratado com um toque humano, podendo aumentar a produção em até 285 litros por ano. Segundo o estudo realizado pela Faculdade de Agricultura, Alimentos e Desenvolvimento Rural desta Universidade, que envolveu 516 fazendeiros em toda a Grã-Bretanha, concluiu-se que os fazendeiros que davam nome aos animais (46%), obtinham uma produção maior do que os que não o faziam. Sessenta e seis por cento dos fazendeiros que participaram do estudo disseram que “conheciam todas as vacas de seu rebanho” e cerca de 10% disseram que animais que temiam os seres humanos pareciam ter pouca disposição para produzir leite.

O fazendeiro Dennis Gibb, co-proprietário da Fazenda Eachwick Red House, nos arredores de Newcastle, disse que acredita ser de vital importância que cada vaca seja tratada como um indivíduo:

“Elas não são apenas nosso ganha-pão, elas são parte da família. Nós amamos nossas vacas e cada uma tem um nome.Nós nos referimos a elas como senhoras, sabemos que todas e cada uma delas têm sua própria personalidade.”

Catherine Douglas, que coordenou esta pesquisa, concluiu que o estudo mostra algo em que muitos fazendeiros atenciosos acreditam há muito tempo:

“Nossos dados sugerem que, alguns dos fazendeiros que produzem leite na Grã-Bretanha consideram as suas vacas seres inteligentes capazes de viver emoções.”

Este estudo foi divulgado na revista especializada, Anthrozoos. Seguindo-se aqui o publicado em, http://atmashala.wordpress.com/2009/01/29/vacas-que-tem-nome-produzem-mais-leite-diz-estudo/

Post dedicado em especial a Paulo Borges, pela sua dedicação às pessoas e aos animais,
Obrigada

"O homem venceu o mundo para tombar de joelhos perante as armas que outrora forjou"



- Alfred Kubin, Die Dame auf dem Pferd [A Senhora sobre o cavalo], 1900-1901.

"Pergunta - À fatalidade dos primeiros tempos substitui-se uma nova fatalidade?

Resposta - A obra do homem é a sua fatalidade, o homem venceu o mundo para tombar de joelhos perante as armas que outrora forjou. Admirai a sua cegueira e deplorai a sua constância. Ah, como ele é ingrato, ligeiro, pérfido e razoável! Obriga-se a servir, as suas penas e vigílias aliviam-no e quanto mais é infeliz mais se estima.

Pergunta - O Estado, obra do homem, não pende sobre o seu autor? Não suplicia o autor e não o obriga a uma servidão sem exemplo?

Resposta - O homem tem demasiada necessidade do Estado para que o Estado não abuse da sua vantagem e de instrumento não se erija em dominador. Sem o Estado, o homem cessa de ser um homem, o homem criado entre os animais deles em nada se distingue, mas o homem que o Estado deprava é mais atroz que as próprias feras, toca o fundo do horror e perguntamo-nos então se não será necessário conferir a preferência aos brutos"

- Albert Caraco, Huit Essais sur le Mal, Lausanne, L'Âge d'Homme, 1963, pp.25-26.

... I


sexta-feira, 30 de outubro de 2009

aprender

aprende jcn...
(ou tenta apreender)
segundo

o das quinas

os deuses vendem quando dão.
compra-se a glória com desgraça.
ai dos felizes, porque são
só o que passa!

baste a quem o que lhe basta
o bastante de lhe bastar!
a vida é breve, a alma é vasta:
ter é tardar.

foi com desgraça e com vileza
que deus ao cristo definiu:
assim o opôs à natureza
e filho o ungiu.


fernando pessoa (o etilizado)

aprende... qualquer criança sabe mais.

não passas de um professor que cirandava (espiavas) pelo meio dos alunos.

"Ver-se a si mesmo como uma coisa estranha, esquecer o que se viu, conservar o olhar"

- Franz Kafka

Alfred Kubin

A memória é morte e esquecimento

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

aí está o OUTONO


com o strip-tease arbóreo
os plátanos os áceres
as sensuais catalpas vestidas só de frutos
os ulmeiros
as onomatopaicas olaias cujas folhas
são páginas inteiras de ÓOs

as cores vivas das montras
contra o nevoeiro-cinza que enche as Ruas
rolos de edredons
manequins vestindo peles pela primeira vez:
raposas martas astrakhans

os cães dos fumadores de haxixe
e os donos-companheiros
junto às fontes da cidade

o vento fresco varredor de folhas de árvores
e do som metálico das horas
dos relógios das igrejas

mas sobretudo
o cheiro feromonico
do fumo acinzentado
das castanhas

aí está o Outono
e entra-nos no sangue

The King of Gaps

There lived, I know not when, never perhaps -
But the fact is he lived - an unknown king
Whose kingdom was the strange Kingdom of Gaps.
He was lord of what is twist thing and thing,
Of interbeings, of that part of us
That lies between our waking and our sleep,
Between our silence and our speech, between
Us and the consciousness of us; and thus
A strange mute kingdom did that weird king keep
Sequestered from our thought of time and scene.

Those supreme purposes that never reach
The deed - between them and the deed undone
He rules, uncrowned. He is the mistery which
Is between eyes and sight, nor blind nor seeing.
Himself is never ended nor begun,
Above his own void presence empty shelf
All He is but a chasm in his own being,
The lidless box holding not-being's no-pelf.

All think that he is God, except himself.

- Fernando Pessoa, Poesia Inglesa, I, edição e tradução de Luísa Freire, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.280.

arevistaentre.blogspot.com

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As pátrias morrem às mãos dos que as defendem

TRAJE A RIGOR

"Honoris causa"... eu gosto de vestir
de borla e de capelo os meus poemas,
subindo o tom dos termos e dos temas
a fim de com os astros... competir.

Além de musicados a preceito,
gosto de vê-los bem ataviados
com roupas de domingo e feriados,
tanto na forma como no conceito.

Quando me sai das mãos a poesia,
é para sem vergonha correr mundo
e tratamento ter de senhoria.

Eu não lhes passo por nenhum dislate
no modo de trajar, pois que no fundo
são fruto de académico ... alfaiate!


JOÃO DE CASTRO NUNES

P. S. - Venham as pedras! JCN


ÓBITO


morreu o Fernandes

ninguém na Vila acreditou
nem sabe como

que o Fernandes
não tinha jeito para nada

"Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"

"Um homem novo recria-se-me na transparência do seu ser. Sinto-o leve e lúcido, instantâneo e incandescente, por entre as cinzas que o fogo deixou. Frente à noite que submergiu os homens e as coisas, frente à anulação da vida transaccionável e plausível, na recuperação deste início do mundo, o homem primordial que em mim sobe tem a face atónita de uma primeira interrogação.
[...]

A invenção de um novo mundo não é uma invenção de ninguém. Não está na nossa mão criá-lo; está só, quando muito, ajudar ao seu parto. E todavia - sabemo-lo bem - é em nós que ele se gera; mas tão longe donde estamos, que só já quando irrevogável o sabemos. Um mundo acontece na escolha indeterminável de nós. Assim pois, testemunhas apenas à superfície desse acto de criação, instrumentos que se ignoram para a grande obra invisível, anterior à obra visível, nós cumprimos sempre as ordens que ninguém deu e não as pudemos pois discutir. [...]

[...] Frente ao grande sono dos homens que o esqueceram, na atenção inexorável ao sem limite de mim, a minha vigília arde como um fogo assassino. É um fogo alto e poderoso. Lume breve na minha intimidade, na brevidade de um pequeno ser, eu, anónimo e avulso, ocasional e frágil - eu. E todavia, esse lume vibra de vigor, brilha único e intenso contra o assalto da noite. Trago em mim a força monstruosa de interrogar, mais força que a força de uma pergunta. Porque a pergunta é uma interrogação segunda ou acidental e a resposta a espera para que a vida continue. Mas o que eu trago em mim é o anúncio do fim do mundo, ou mais longe, e decerto, o da sua recriação"

- Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, Lisboa, Bertrand, 1994, 3ª edição, pp.13-15.

Volante


Tenho em mãos um volante e ao longe um alvo em cujo alinho é um rumo aprumado. Precedo a inércia movendo-o, suavemente, visando ao longe um limite; até onde caminhará. Um breve movimento, níveo, lança-o em direcção ao incerto… mas, não estou aqui, na Terra, onde todas as leis me confundem; estou no vácuo e o volante, distanciado da origem, tende velozmente até à unidade progredindo por todas as posições do infinitésimo e eternamente aproximando-se do fim, sem nunca o alcançar.

(google image)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

uma espécie de mata-borrão do toda-a-gente-como-toda-a-gente-de-toda-a-gente




Nós pensamos assim porque as outras pessoas todas também pensam assim.
Ou porque – ou porque – no fim de contas pensamos assim,
Ou porque nos disseram isso, e pensamos dever pensar assim,
Ou porque assim pensámos uma vez, e pensamos que ainda pensamos assim,
Ou porque, tendo pensado assim, pensamos que assim havemos de pensar.

Henry Sidgwick

"Sem deixar atrás de mim nenhum rasto por todo o lado irei"

O ruído seco de uma pedra contra um bambu!
E tudo o que tinha aprendido foi esquecido num instante.
Não havia nenhuma necessidade de exercício e de disciplina.
Em cada acto e movimento da vida quotidiana
Manifesto a Via eterna.
Não mais cairei numa armadilha escondida.
Sem deixar atrás de mim nenhum rasto por todo o lado irei.

- Hsiang Yen

Agora

Centenas de ardilosas civilizações,
infindáveis hábitos e doenças kármicas,
montanhas de pergaminhos sagrados e preciosos ensinamentos...
Nós, radicalmente, deixamo-los todos para trás –
milhares de hipnotismos e técnicas várias
e podre apego a monstruosas organizações religiosas...
Apesar de éons de desenvolvimentos de sabedoria símia extremamente sagaz,
tal paradigma não pode afinal alcançar este momento único,
vacuidade-sentar.

Quando, inesperadamente, estamos fora de todos os circuitos rígidos
da nossa intrincada floresta de sistemas arranha-céus
na prisão das nossas cabeças encaixotadas,
imediatamente, este agora de luz-vida-amor último,
inevitavelmente, insubstituivelmente, aqui está; a própria resposta-realidade actuante,para tudo.]
Agora.

- Hôgen Yamahata, “Uma gota de orvalho no deserto” [excerto].

A interculturalidade

A interculturalidade não é nem folclore para descansar nem turismo para entreter. De facto, o encontro de culturas remonta aos alvores da história. Tem porém as suas dificuldades, sobretudo quando uma cultura se crê superior a outra - como tantas vezes sucedeu e não só nos nossos dias. Cada cultura é uma galáxia com vida própria. É portanto metodologicamente inadequado, ainda que por vezes possa resultar uma violação fecunda, aproximarmo-nos a uma cultura com as categorias de outra. Comove e aterra darmo-nos conta da confiança enorme que o Ocidente ainda tem nos seus instrumentos. É a força do mito. Porém os acontecimentos do mundo, depois da Primeira e sobretudo da Segunda Guerra mundial (que ainda designamos assim), estão a fazer perder ao "Primeiro Mundo" a confiança nos seus mitos e preparam-no para aproximar-se a outras civilizações com modos distintos dos da "missão", da "colonização" e do "desenvolvimento", ainda que seja apenas uma minoria sem força política a que clama que os velhos modelos já não servem para o entendimento, a paz e nem sequer para o bem-estar pessoal. São muitos porém, ainda, os que imaginam, por exemplo, que os direitos humanos, tal como "nós" os formulámos, são universais; e agora, com a melhor intenção, os querem ampliar a uma "ética global", quiçá porque ainda cremos que o mundo é redondo - e nós o seu centro"

- Raimon Pannikar, La experiencia filosófica de la India, Madrid, Trotta, 2000 [1997], p.13.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Algumas fulgurações

Como não aceitar como endoutrinação o que não brota de dentro de nós?
O maior de entre todos os bens é interior: a felicidade.
Se tens de o interpretar, não é real.
Se tens de o aprender, não é real.
A realidade é fácil.
O ser humano é um ser complicado.
A realidade é sem história.
Todas as doutrinas têm telhados de vidro.
O pensamento não capta a realidade.
A realidade não pode ser dita.
Por mais que aprenda, serei sempre ignorante.
O ser humano procura o saber pela porta errada.
O único saber que há a saber é o saber tocar.
Como tocar o que é intangível?
Os corações interpenetram-se.
O amor é o cume da sabedoria.
Tudo o que não é imediato é falso; a realidade é imediata; Deus é a realidade; só a realidade existe; Deus é imediato; tudo é Deus.
Esqueçamos Deus e concentremo-nos na realidade.
Deus é um fardo pesado demais.
Não caibo em Deus. Eu próprio explodiria.
Não caibo em mim. Eu próprio explodiria.
Sou tudo, mas escolho ser nada.
Sendo nada, sou tudo.

domingo, 25 de outubro de 2009

Nautilus

Pintura de António Couvinha

A matéria do vento
Essa sublime luz!
A pedra irradiada
da palavra:
Espírito do Verbo
Flor sombria
Estrela dolorosa
em carne e dor ardente
E som.



Cansados estão os olhos
de ver subir as águas
Espelho do céu
Pedra polida
Ao pensamento torna
Acesa em Luz e Vida.

Dedicatória


À Adraga do Meu Coração*








Hoje acordei e sou rocha.
Nem passado, nem futuro estampado no rosto. Talvez uma escarpa mais pontiaguda me denuncie, por entre as outras rochas. Ou talvez faça temer algum pescador que queira lançar a cana daqui.





Hoje acordei e sou rocha.
Há grãos de areia aos meus pés que foram pedaços de mim. E eu já fui feita dessa areia que o Mar leva daqui. Todos eles se misturam com outros grãos de outras rochas e com o Sal. Todos eles ganham nova vida depois de se soltarem de mim e fazem viagens que eu fico a imaginar daqui.





Hoje acordei e sou rocha.
Sou feita que um material do mundo que me escapa ao entendimento. Todos os minerais que me compõem, os sais, todas as pequenas quantidades de minerais dissolvidos ao longo dos séculos… tudo isso me traz o equilíbrio de que preciso para que não se dê o colapso.





Hoje acordei e sou rocha.
A textura e a estrutura com que acordei hoje é de uma verticalidade que me assusta. Sempre tive vertigens. Sempre tive medo das alturas.





Hoje acordei e sou rocha.
Fragmentada, com alguma inclinação, provocada pela erosão dos dias e por vulcões desconhecidos. Todos os dias e todas as noites, os ventos fortes me trazem e me levam outras partículas da terra e do mar.





Hoje acordei e sou rocha.
Sem me importar com clareza com a força ou a suavidade com que as ondas me tocam.
A suavidade traz um manto branco e puro que me tapa a escuridão da pele. E a força traz os salpicos que me enfeitam e me dão o brilho ocasional que uma rocha tem em frente do sol-pôr.





Hoje a cordei e sou rocha.
A dureza não me deixa satisfeita, a resistência também não.
Mas ter os olhos cheios de Mar, ser quente, a ferver de beijos do Sol, vê-lo descer e colorir o horizonte a cada dia, ver chegar a Lua e dormir com ela, faz-me sonhar sem querer ser outra coisa.


O guerreiro da luz, às vezes, luta com quem ama.

O homem que preserva os seus amigos jamais é dominado pelas tempestades da existência; tem forças para ultrapassar as dificuldades e seguir adiante.

Entretanto, muitas vezes, sente-se desafiado por aqueles a quem procura ensinar a arte da espada. Os seus discípulos provocam-no para um combate.

E o guerreiro mostra a sua capacidade: com alguns golpes, lança as armas dos alunos por terra, e a harmonia volta ao local onde se reúnem.

"Porque fazes isso se és tão superior?", pergunta um viajante.

"Porque, quando me desafiam, na verdade, querem conversar comigo e - desta maneira - mantenho o diálogo", responde o guerreiro.

Paulo Coelho, Manual do Guerreiro da Luz. Cascais:Ed. Pergaminho, p.25.

Que significa a visão e enigma de Zaratustra?

Liberto do anão que lhe pesava sobre os ombros, o qual, proclama, não conhece e não pode suportar o seu “pensamento abissal (abgründlichen Gedanken)”, Zaratustra detém-se junto de um portal (Torweg, que também significa literalmente “portão louco”), em cujo frontão está inscrito o nome “instante”, onde “se reúnem dois caminhos” frontalmente opostos, que ninguém ainda seguiu “até ao fim”: um estende-se para trás, o outro para diante e ambos duram uma eternidade. Formula então perguntas que simultaneamente se respondem: “Se alguém, todavia, seguisse por um destes caminhos, sem parar e até ao fim, julgas […] que […] se oporiam sempre?”. Contemplando o caminho eterno que se estende para trás, não deverá tudo o que é capaz de correr já o haver percorrido pelo menos uma vez? E não deverá tudo o que pode suceder já haver assim sucedido? Se tudo já foi, não devem também aquele portal, a aranha que rasteja ao luar, o luar, Zaratustra e o anão já haver existido? E não estará tudo tão intimamente interligado que aquele instante não arraste atrás de si todas as coisas futuras, incluindo a si mesmo? Não deverá tudo o que pode correr ter de percorrer uma vez mais o longo caminho que se estende para diante? Não será assim necessário que Zaratustra, o anão e todos percorram esse “longo e temível” caminho futuro e do passado regressem àquele instante?

Ao dizer isto, Zaratustra falava “em voz cada vez mais baixa”, com medo dos seus “próprios pensamentos e da sua oculta intenção”, quando ouve uivar um cão. Tudo se desvanece e encontra-se só perante um jovem pastor que se contorce, com o rosto desfigurado pela repugnância e pelo terror, pois uma forte cobra negra se lhe introduziu na boca, mordendo-lhe a garganta. Começa a puxar pela serpente, sem sucesso, até que uma voz grita pela sua boca: “Morde! Morde! / Arranca-lhe a cabeça! Morde!”. Ao gritar, “espanto, ódio, nojo, piedade”, tudo o que em si “trazia de melhor e de pior”, de si jorrava “num único grito”. Aqui Zaratustra interrompe a narrativa para pedir a todos, “exploradores” e “aventureiros” ou não, que lhe decifrem o enigma daquela visão” que é simultaneamente “previsão”: “Que vi então em imagem? E qual é o que deve chegar um dia?”; “Quem é o homem em cuja garganta se introduzirá assim o que há de mais negro e de mais pesado no mundo?”

Retomando a narrativa, o pastor morde firmemente a cabeça da serpente e cospe-a para longe, levantando-se “com um salto”. Já não é então pastor nem homem: “transformado, transfigurado (iluminado?), ria”, ria como nenhum homem o fez na terra. E o capítulo termina com a confissão:

“Ó meus irmãos! Ouvi um riso que não era um riso humano, e agora devora-me uma sede, uma saudade (Sehnsucht) que nada aplacará.
A minha saudade (Sehnsucht) daquele riso devora-me; oh!, como posso tolerar ainda a vida! E como tolerar agora a morte!”

- Fragmento da comunicação "O Eterno Retorno em Friedrich Nietzsche e Raul Proença", a apresentar no dia 29 de Outubro, no Colóquio "Proença, Cortesão, Sérgio e o grupo "Seara Nova"", que decorre de 28-30 de Outubro no Anf. III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

a pedido

A alma é uma coisa que a espada não pode ferir?
Conhecimento = Purificação?
Até que vértice?

Maria Guedes

O outro como figura central do Cristianismo; o amor ao outro como o mandamento cristão; Cristo amigo da Humanidade

Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Jo 14, 34-35

É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei. Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos amigos.

Jo 15, 12-13

A vida é uma dor de dentes

ainda SARAMAGO


há que dar atrás uma passada
não é por nada

há muito mais Davides
do que há Golias

por causa da bíblica
pedrada

Alegria

§19. Alegria (1). A alegria de viver nasce no interior mais íntimo da 'alma', nessa zona limite onde habita uma substância sem nome. A alegria de viver nada tem a ver com o cálculo do entendimento ou com a análise de custo-benefício da experiência mundana.

Aquele que transporta a alegria de viver vê-se muitas vezes a si próprio como que, involuntariamente, acometido por ela. A essência da alegria de viver é o transbordar. Transmite-se aos músculos, transforma-se num riso expansivo, num afago, numa voz de tom mais solto e vibrante.

A alegria de viver não causa a admiração que, por exemplo, as proezas físicas ou intelectuais suscitam. O tipo de sentimento causado junto de quem a testemunha está mais próximo da solenidade do respeito. Quem é alegre vive numa zona vizinha daquele que é bondoso até à fronteira da santidade. Ambos habitam no reino do dom e da graça.

Viriato Soromenho-Marques, Pontos de Vista

serenidade

Não tens rosto

E contudo pé-ante-pé

Suspensa no rebordo dos beirais

Acompanhas a solidão

O ranger das telhas parece que torna ocas as coisas

Mas eu sei que a aldeia em que brinco quando menino

Só tem casas pretéritas

Há muito sem telhado

Silenciosa viste cada ilusão

Como cal viva a borbulhar no interior da espera

A argamassa do tédio tem uma consistência esponjosa

Há sempre um lado de dentro quando se tem a consciência da imensidade

As vidraças ficam embaciadas da ansiedade com que se procura a novidade

mesmo ao dobrar da esquina sabe-se lá o que lá estará

sei-te apenas presente

aquífero e semente do fim

talvez fosse bom se agora viesses com a Primavera

a bênção das brisas que nada resguarda

nem o medo do frio

mas que sei eu disso

sábado, 24 de outubro de 2009

saramago y va

não entres na igreja ó cavador
é falsa a religião dessa canalha
os santos são pau não têm valor
valor dá-se ao homem que trabalha.

como é possível a igrela católica salazarenta, conivente com a morte
de homens justos, com a pobreza, com o fascismo, atacar saramago?

"Este quase-nada efervescente"

Observa então os objectos que advêm no exterior.
Mais enganadores que falsas aparências,
São, como a água de uma miragem,
Evidentemente um sonho, uma alucinação mágica,
Semelhante ao reflexo da lua na água, semelhante ao arco-íris.

No interior, observa a tua mente:
Mesmo que capte a atenção quando não cuidamos,
Examinando-a, a sua “própria natureza” não se pode encontrar;
Um nada que se faz passar por alguma coisa, vazio e transparente;
Não se o pode definir dizendo: “é isso !”,
Este quase-nada efervescente.

Contempla o que se mostra
Em cada um dos dez orientes:
Qualquer que seja o aspecto,
A Realidade, sua essência,
É a vacuidade, espírito do abismo.

Sendo todas as coisas da natureza do vazio,
Visto ser o vazio que observa o vazio,
Quem esvaziará o que há a esvaziar ?

A ilusão mágica é testemunha da ilusão mágica,
E o extravio observa o extravio:
A partir daí que fazer das numerosas categorias
Tais “vazio” e “não-vazio” ?

[...]

“Dualidade”, “não dualidade” e assim por diante,
Todos estes quadros, ficções extremistas,
Deixa-os, como os remoinhos de um rio,
Apagarem-se naturalmente em si mesmos.

- Nyoshül Khen Rinpoche [Tibete, 1932-1999), "O espelho das chaves” [excertos], Le Chant de l'Illusion et autres poèmes, traduzido do tibetano, apresentado e anotado por Stéphane Arguillère, Paris, Gallimard, 2000, pp.87-88.

Um dia vegetariano por semana, à 3ª feira - Pelo bem do planeta, do homem e dos animais



Partido Pelos Animais - Comunicado à Imprensa

Um dia vegetariano por semana

Sabe que, no relatório «A Longa Sombra da Criação de Gado Questões
e Opções Ambientais», a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) declara que o sector da criação de gado emite gases nocivos em maior escala que os produzidos por todos os tipos de transportes em conjunto?

Sabe que o Banco Mundial demonstrou que, desde 1970, 91% da deflorestação na Amazónia
está ligada às necessidades da indústria da carne, agravando os efeitos do aquecimento climático, que é um dos maiores problemas actuais do planeta?

Sabe que a indústria da carne é responsável por 37% de todo o metano devido às actividades humanas (que contribui para o aquecimento global 23 vezes mais que o dióxido de carbono), em grande parte produzido pelo sistema digestivo dos ruminantes, bem como por 64% do amoníaco que contribui para as chuvas ácidas?

Sabe que a pecuária intensiva é responsável pelo empobrecimento dos solos e põe em risco as reservas naturais de água, uma vez que a produção de um só quilo de carne de vaca necessita de 7 quilos de cereais ou feijões de soja e cerca de 15.000 litros de água?

Está consciente que a criação de gado incide assim directamente sobre o aquecimento
climático, a poluição dos solos e dos lençóis freáticos, ao mesmo tempo que representa um terrível desperdício, pois perto de um terço dos cereais produzidos mundialmente destina-se a alimentar animais?

Já pensou que, se os países “desenvolvidos” diminuíssem o consumo de carne, seria possível erradicar a fome que mata perto de seis milhões de crianças todos os anos no mundo?

Sabe que, a manterem-se os números actuais da actividade piscatória, em 2048 não haverá peixes em liberdade nos mares e oceanos, o que acarreta consequências gravíssimas para o ecossistema? E sabe que os peixes e outros animais marinhos criados nas chamadas “fish farms”, usadas como alternativa à pesca em alto mar e que já fornecem metade do peixe consumido pelo ser humano, consomem eles próprios animais pescados em alto mar?

Sabe que as “fish farms” produzem largas quantidades de resíduos, que se espalham pelo oceano e mesmo até à costa, e que as concentrações antinaturais
em que os animais vivem nesses locais favorecem o desenvolvimento de uma série de doenças e parasitas?

A quem interessa este péssimo negócio, que só prejudica o planeta, o homem e os animais, criados, transportados e abatidos nas condições mais cruéis? A ninguém, excepto a uma minoria de grandes empresas e empresários, que, com o apoio dos governos e com a nossa colaboração, enriquece sacrificando à sua ganância as populações, os animais e o planeta.

É por isso que, tal como fez a Fundação Brigitte Bardot em França, o Partido Pelos Animais vem pedir ao Governo português que instaure um dia vegetariano em todas as instituições públicas, convidando as privadas a fazerem o mesmo. A exemplo do que sucede no município de Gent, na Bélgica, onde a Terça-feira foi delcarada “veggiedag”, sugerimos que todas as Terças-feiras as cantinas portuguesas apresentem ementas vegetarianas. A par disto, solicitamos aos cidadãos que, pelo bem do planeta, do homem e dos animais, se abstenham de comer carne e peixe nesse dia, o que é também extremamente benéfico para a saúde.

Todos nos sentiremos melhor e, quem sabe, descobriremos que podemos estender
progressivamente a dieta vegetariana a mais dias.

A redução do consumo de carne e peixe é hoje um imperativo ético, ecológico, terapêutico e económico, bem como o exercício da consciência cívica e política mais esclarecida que cada vez mais urge na actual situação do planeta.

Solicitamos à comunicação social que difunda esta proposta e a todos os cidadãos que a ponham em prática e divulguem por todos os meios.

Sexta-feira, 23 de Outubro de 2009

A Comissão Coordenadora do Partido Pelos Animais

Para mais informações contacte:

Paulo Borges

918113021

www.partidopelosanimais.com
geral@partidopelosanimais.com

Fontes:

Livestock a major threat to environment (2006, 29 de Novembro). FAO Newsroom. Acedido
em 21 de Outubro de 2009.
http://www.fao.org/newsroom/en/news/2006/1000448/index.html

Opportunity Untapped (2006, 22 de Março). FAO Newsroom. Acedido em 21 de Outubro de
2009.
http://www.fao.org/newsroom/en/focus/2006/1000252/index.html

Biello, David (2006, 2 de Novembro). Overfishing Could Take Seafood Off the Menu by 2048. Scientific American. Acedido em 21 de Outubro de 2009.
http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=overfishing-could-take-se

Margulis, Sergio (2004). World Bank Working Paper No. 22: Causes of Deforestation of the Brazilian Amazon [versão electrónica]. The World Bank. Washington, D. C.. Acedido em 21 de Outubro de 2009
http://wwwwds.worldbank.org/servlet/WDSContentServer/WDSP/IB/2004/02/02/000090341_20040202130625/Rendered/PDF/277150PAPER0wbwp0no1022.pdf

Schwartz, Mark (2009, 8 de Setembro). Stanford study: Half of the fish consumed globally is now raised on farms. Stanford University News. Acedido em 21 de Outubro de 2009.
http://news.stanford.edu/news/2009/september7/woodsfishfarmstudy090709.html

Steinfeld, H., Gerber, P., Wassenaar, T., Castel, V., Rosales, M. e de Haan, C, (2006). Livestock's long shadow Environmental issues and options [versão electrónica]. FAO. Roma. Acedido em 21 de Outubro de 2009.
http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.html

Stober, Dan (2009, 20 de Fevereiro). Coasts catch fish farming’s dirty drift. Stanford University News. Acedido em 21 de Outubro de 2009.
http://news.stanford.edu/news/2009/february25/fish_sr022509.html

Nota: alguns links parecem ter sofrido alterações e estarem corrompidos. Pode acedê-los no site do PPA: www.partidopelosanimais.com

"Somos a carne e a presença do todo que nos cerca." - Vergilio Ferreira




Fotografia: Howard Schatz


O sangue que nos aquece e nos inventa a vida, é o que respiramos, dá aos sonhos as formas dessa presença invisível de tudo o que nos cerca. Um modo de pensar, de sentir, organiza-se nos limites das raízes indistintas, transforma-se aí obscuramente, enquanto as nossas mãos distraídas continuam a moldar o pó dos sonhos mortos. Somos a carne e a presença do todo que nos cerca. As células vivas de um espírito que não morre vão expulsando as que já se corromperam. Lentamente, uma evidência nova habita-nos os nervos, corporiza-se connosco, é a nossa pessoa. E um dia descobrimo-nos uma unidade miraculosa, uma certeza de sermos, o puro acto da nossa identidade – no que afirmamos ou negamos. Muita gente, meu amigo, nos explica que tal modo de sermos unos, de habitar-nos a evidência que nos coube, é o fruto da erosão ou da sedimentação do que isto ou aquilo semeou em nós. Sim. Mas a pedra que a água desgastou, se pudesse conhecer-se, ignorava como vã a explicação da água e do tempo, sabia-se inteira e irredutível, na sua condição de pedra mutilada. Ela seria apenas a verdade absoluta de ser pedra com desgaste, no instante, no instante em que se reconheceu assim. A acção do que nos rodeia, se a sabemos é uma verdade indiferente. O que não é indiferente e se nos impõe como a única verdade que de nós irrompe, o que nos afirma uma totalidade de ser, o que nos define e é a própria realidade de estarmos sendo – é o todo que nos sentimos e nos projecta, é a absoluta presença de nós a nós próprios, esta irredutível e impensável realidade do que somos, impensável e irredutível porque não podemos sê-la de fora, desdobrá-la em duas totalidades.
Vergílio Ferreira, “Carta ao Futuro”, Livraria Bertrand, Lisboa, 1981, págs.31-33. 

Quanto mais amas, mais te dás. Dar-te-ás ao que amas?

Lê tu mesmo.

Que dois!

Se o Saramago, coitado!
para a caixa uma não disse,
o padre pelo seu lado
primou pela idiotice!

JCN

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

gente sé-nior


hoje eu fui pela primeira vez à Hidro-ginástica

água morninha, tudo gente gorda - a começar pela monitora

ambiente de nevoeiro e música brasileira

vamos caminhar à volta da piscina
levantando bem os joelhos
agora vamos chutar - com o direito com o esquerdo
caminhar e chutar sempre a caminhar e a chutar
levanta bem os braços para a esquerda, inclina os braços levantados para a direita e para a esquerda
vamos agora pegar os travesseiros
isso, lindos meninos, vamos caminhar puxando os travesseiros....

dois a dois agora vamos dar as mãos
o que vai de costas puxa o companheiro
até à outra margem
trocam e fazem o percurso inverso
batendo os pés e com a cabeça levantada

vamos lá
estão todos preparados?
...........................................

tu, de vinte e poucos anos, que tens a leviandade de estar a ler
(quem sabe a rir)
este relato tonto

sabe que não tarda serás tu
a enfiar uma touca azul
chinesa
na cabeça
e a agir às ordens
de qualquer simpática monitora
municipal

vamos lá senhor antónio
não está cá
prá onde é que está a olhar?

Da "pseudo-universalidade" do "reino do uniforme" como principal obstáculo ao "diálogo entre culturas"

"[...] vejo hoje o pensamento estranhamente desprovido perante o reino do uniforme que, pelo facto de atingir doravante os limites do planeta, estabelece a sua lei - lei da força oculta e não do direito; e que, para além do sentimento de perda, nostalgicamente experimentado mas culpabilizando-se a si mesmo por não saber harmonizar-se com a nova dimensão das coisas, este colectivo atolamento no uniforme não é na verdade criticado: que a sua pseudo-universalidade não é claramente analisada. Ora, é no entanto precisamente aí, creio, que o desejado diálogo entre culturas encontra o seu principal obstáculo; como também a sua maior utilidade. Pois, tomando a uniformização ambiente pelo universal, falha-se ao mesmo tempo o recurso - que não seja somente conservatório ou museológico - da diversidade das culturas; assim como o plano - que não seja somente de imitação ou de assimilação - sobre o qual elas poderiam encontrar-se"

- François Jullien, De l'universel, de l'uniforme, du commun et du dialogue entre les cultures, Paris, Fayard, 2008, p.37.

A reflectir

Sinto, por vezes, que a minha luta é interior, uma luta comigo mesmo e, particularmente, contra as minhas emoções negativas, despertadas interior ou, por outro lado, exteriomente.

Como se o bem e o mal existissem dentro de mim e lutasse, quando contra essa negatividade luto, não contra o Demónio, entendido como uma figura exterior que, eventualmente, sobre mim age, mas contra os meus próprios demónios interiores - as emoções negativas.

Sinto, também, que é uma luta extenuante, esta do bem contra o mal, como se nela estivéssemos, corpo e mente, em constante purga, à medida que nos vamos imbuíndo daquilo que os cristãos denominam por Espírito Santo.

EN T RE - finisterreno para um laboratório do real



A Revista ENTRE - Finisterreno para um laboratório do real pretende ser um âmbito dialogal entre culturas e saberes, religiões e espiritualidades, tradições e civilizações.

O nome da publicação pretende exprimir uma tal vocação para o suscitar de pontes entre domínios que se descobrem como intimamente ligados.

A concepção gráfica da revista intenta encontrar um ponto de equilíbrio|desequilíbrio plástico e visual entre os modos oriental e ocidental de percepção do real: algo entre a diversidade evolutiva ocidental e a instantaneidade intuitiva oriental.

Será também, por isso, um lugar não-localizável onde tempo e eternidade, espaço e vacuidade, palavra e silêncio, discurso e percurso irão de mãos dadas.

Estruturada de modo sistémico, como um espaço de reflexão holónica e integral acerca das coisas, a revista é sobretudo um organismo vivo que evolui em harmonia com a realidade que em cada momento se desvele, revele e de novo re-vele: a verdade é ditada pelo olhar que sobre ela lançamos. Ela é porventura apenas o constante remanescer disso em nós.

A revista terá periodicidade semestral, e será predominantemente temática, sem perder de vista a dimensão mais ampla e abrangente da actualidade do mundo em que vivemos.

Terá uma separata que pretende fazer conviver poesia e fotografia, enquanto linguagens de apreensão, vivência e transfiguração do real.

Não se trata duma revista de poesia e fotografia, trata-se sim de entender tais linguagens como duas possíveis asas da theoria e da pragmática do real, qual o vemos, temos e guardamos, tendo em vista rasgar os intrínsecos limites de cada domínio de linguagem e o ilimitado que lhes subjaz.

O real não tem linguagem, nós é que o lemos através da diversidade de modos por que esta se configura, para fazê-lo presente, ainda que em ausência desse algo que nos visite ou se nos furte.


arevistaentre.blogspot.com

EN T RE(M)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

De súbito


A caminhada

Exorto todos a que visitem o blogue "A caminhada", e a que participem, se assim o desejarem. Todos são bem vindos. Uma palavra de agradecimento à Serpente e ao Paulo Borges pela inspiração.

Link: A caminhada

amar o mundo

"tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida : ' o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.' assim mesmo eu estava lá"

josé saramago, as pequenas memórias

defesa da filosofia

qualquer ferramenta é uma arma, se a usares certeiramente.

Cântico de Azarias

[Nabucodonosor irou-se e decidiu lançar os três jovens na fornalha ardente. Mas... o que aconteceu? Vejamos:]

Então, passeavam no meio das chamas, louvando a Deus e bendizendo o Senhor. Azarias, de pé no meio das chamas, fez esta prece:

Bendito e louvado sejas, Senhor, Deus dos nossos pais!
Que o teu nome seja glorificado pelos séculos!
És justo em toda a tua conduta para connosco;
as tuas obras são rectas, os teus caminhos rectos, e os teus juízos equitativos.
Fizeste um juízo equitativo em tudo o que nos infligiste e em tudo o que infligiste à cidade santa de nossos pais, Jerusalém;
é por efeito dum juízo equitativo que nos infligiste tudo isto, por causa dos nossos pecados.
Pecámos, prevaricámos, afastámo-nos de ti;
em tudo temos procedido mal;
e não observámos os teus mandamentos.
Não os temos posto em prática, não temos observado as leis que nos deste e que eram para nossa felicidade.
Em todos os males que mandaste sobre nós, em tudo o que nos infligiste, foi uma sentença justa que aplicaste.
Entregaste-nos nas mãos de injustos inimigos, de ímpios encarniçados, sem lei, e a um rei, o mais iníquo e perverso de toda a terra.
Agora não ousamos mais abrir a boca.
Vergonha e infâmia acabrunham os teus servos e todos os que te adoram.
Pelo teu nome, não nos abandones para sempre, não anules a aliança.
Não nos retires a tua misericórdia, em atenção a Abraão, teu amigo, a Isaac, teu servo, aos quais prometeste multiplicar a sua descendência como as estrelas do céu, e como a areia das praias do mar.
Senhor, estamos reduzidos a nada diante das nações, estamos hoje humilhados em face de toda a terra, por causa dos nossos pecados.
Agora não há nem príncipe, nem profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem um local para te oferecer as primícias e encontrar misericórdia.
Que pela contrição de coração e humilhação de espírito, sejamos acolhidos, como se trouxéssemos holocaustos de carneiros e de touros e de milhares de cordeiros gordos.
Que este seja hoje diante de ti o nosso sacrifício;
possa ele reconciliar-nos contigo, pois não têm que envergonhar-se aqueles que em ti confiam.

É de todo o coração que agora te seguimos, te veneramos e procuramos a tua face;
não nos confundas.
Trata-nos com a tua doçura habitual e com todas as riquezas da tua misericórdia.
Livra-nos pelos teus prodígios e cobre de glória o teu nome, Senhor.
Que sejam confundidos os que maltratam os teus servos, que sintam vergonha ao verem-se sem poder e aniquilados na sua força.
Assim, saberão que Tu és o Senhor Deus único, glorioso em toda a superfície da terra!

Entretanto, os servos do rei, que os tinham lançado na fornalha, não cessavam de a aquecer com nafta, estapa, pez e lenha seca. As chamas, que então subiam a quarenta e nove côvados acima da fornalha, desviando-se, queimaram os caldeus que se encontravam junto dela.
O anjo do Senhor, porém, tinha descido até Azarias e seus companheiros e afastava o fogo da fornalha. Transformou o centro da fornalha num lugar onde soprava como que uma brisa matinal: o fogo nem sequer os tocou e não lhes causou qualquer mal nem a menor dor.

Dn 3, 24-50
Satirizando:

PPA

Parece que os partidos que existiam
ainda não chegavam; vai daí
arranja-se mais um, segundo li,
até porque os antigos... enfastiam.

Só que este, vejam lá que disparate!
é de animais, os quais estão dispostos
a disputar nas urnas alguns postos
para irem protelando... o seu abate.

Há-de ser lindo, em pleno parlamento,
ouvir cantar o galo... despertando
um qualquer deputado... sonolento!

Não menos divertido será quando
o burro, autorizado a se expressar,
se limitar apenas... a zurrar!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Coimbra, 21 de Outubro de 2009.

La Scène Invisible



(Jean-Honoré Fragonard, Le Verrou, 1778)

"Ce n'est pas la différence sexuelle, ce n'est pas non plus la révélation de cette différence, ce ne sont ni la dénudation ni l'excitation choquante des deux sexes - l'évasement sanglant ou trempé de l'un, l´érection bleuissante et tressautante de l'autre - qui font le secret.
La scène qui a existé et qui ne sera jamais visible fait le secret. Ce secret s'adresse à son porteur lui-même. Puisque même ce secret, voué au fantasme éternel, est inconnaissable. Il ne s'agit pas d'une âme qui cherche son père ou sa mère. C'est le corps lui-même, indépendamment de son âme, très en amont de son âme, qui cherche sa source. Il est voué à l'originaire comme à l'inconnaissable"

- Pascal Quignard, La nuit sexuelle, Paris, Flammarion, 2007, p.31.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

argumentação de Saramago

Deus andava não se sabe por onde.
De repente lembra-se de fazer o MUNDO
Faz em 6 dias
Ao 7º- descansa

Ou entra em Greve?
Ou em Lay Out, ou lá o que é aquilo?

e antes de se lembrar de fazer o MUNDO
o que fazia?

a IGREJA não gosta
que Saramago tenha regressado à curiosidade de miúdo
:
o que é isto? mas como é Deus?
onde é que dorme?
é casado? está desempregado?
tem carro? paga impostos?

e prepara-se para lhe baixar as calças
e dar-lhe
duas palmadas no rabo.

entre os que acreditam
que são filhos de Deus
não falta quem aplauda

Condenação dos amigos de Daniel

Disse-lhes Nabucodonosor:

"Chadrac, Mechac e Abed-Nego, é verdade que rejeitais o culto aos meus deuses e a adoração à estátua erigida por mim? Pois bem! Estais dispostos, no momento em que ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da cítara, da lira, da harpa, do saltério e de qualquer outro instrumento musical, a prostrar-vos em adoração diante da estátua que eu fiz? Se não o fizerdes, sereis logo lançados dentro da fornalha ardente. E qual o deus que poderá libertar-vos da minha mão?"

Chadrac, Mechac e Abed-Nego responderam ao rei Nabucodonosor:

"Não vale a pena responder-te a propósito disto. Se isso assim é, o Deus que nós servimos pode livrar-nos da fornalha incandescente, e até mesmo, ó rei, da tua mão. E ainda que o não faça, fica sabendo, ó rei, que não prestamos culto aos teus deuses e que não adoramos a estátua de ouro que tu levantaste."

Dn 3, 14-18
CADA QUAL--- A SEU JEITO

Deixem para os Poetas, por favor,
tudo o que diz respeito à Poesia;
guardem para vocês a teoria
que em nada serve para se compor!

Só eles é que sabem como dar,
ao som da lira, voz às emoções;
só eles sabem, sem mistificar,
dar largas ao papel das ilusões.

Não teve Homero mestre nem Vergílio
quer na epopeia quer no terno idílio
senão seu próprio engenho natural.

Deixem, pois, os Poetas à vontade
com suas propensões... pois cada qual
é como "a eiró que sem rumor se evade"!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Coimbra, 20 de Outubro de 2099.