O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 11 de outubro de 2009

Diotima


imagem: google
N'O Banquete, Platão representa Sócrates a descrever a busca [ascensão mística a um estado de consciência mais elevado] como um caso amoroso que se apodera do ser inteiro daquele que procura, até que este alcance um ekstasis que o transporta para além da percepção normal. Sócrates explicava que recebera esta informação de uma sacerdotisa chamada Diotima, que mostrava aos seus mystai como o seu amor por um corpo belo podia ser purificado e transformado na contemplação (theoria) extasiada da beleza ideal. A princípio, o iniciado na filosofia era simplesmente arrebatado pela perfeição física do ser amado; depois, começava a crer que essa pessoa era apenas uma manifestação de uma beleza que também existia noutros seres. Na fase seguinte da sua iniciação, apercebia-se de que a beleza do corpo era de uma ordem menor do que a beleza mais fugidia da alma, que podia existir mesmo numa pessoa fisicamente feia. Por fim, explicava Diotima, «à medida que se aproximava do término da iniciação, explode sobre ele aquela visão maravilhosa, que é a própria alma da beleza para encontrar a qual tanto labutou». Esta beleza era eterna; já não podia ser confinada a um objecto particular, mas era «absoluta, existindo sozinha no interior de si mesma, única, eterna». Todas as coisas participavam dela, «porém, de tal modo que, embora nasçam e morram, ela não passa por aumento nem diminuição, nem sofre qualquer modificação».

Karen Armstrong, Grandes Tradições Religiosas, Temas e Debates, 2009, p.316

8 comentários:

Anónimo disse...

Esta iniciação faz-me recordar a sexualidade tântrica que, julgo eu, canaliza a energia da atracção erótica para romper com os véus mentais que obscurecem a Visão.

Diz-nos Gedun Chopel o seguinte:

"Quando o sangue espontâneo [a essência feminina] se entranha dentro do homem
E quando a essência da lua [a essência do homem] se dissolve dentro da mulher,
O poder e a felicidade supremos são definitivamente alcançados.
Eles tornam-se como Shamkara [Shiva] e Uma."

A energia erótica como um cáustico destruidor de identidades, de percepções ilusórias da divisão entre sujeito e objecto...

Também Paulo Borges escreve:
"Como o indica S.S. o Dalai-Lama, e se desenvolve no Kalachakra Tantra, a força do desejo e a união sexual, física ou não, têm a virtude de liquefazer "os elementos vitais situados no cimo do crâneo", fazendo-os descer ao longo do canal central até ao centro genital, onde as essências masculina e feminina se reúnem, com a experiência da beatitude não-conceptual, sendo a partir daí o seu fluxo invertido em direcção ascendente pelo poder da meditação O que exige não se cair em erro da ejaculação, pelo qual a energia se perde e tem fim a beatitude da experiência não dual designada como vacuidade. Toda a questão reside em transmutar, por via da poderosa força do desejo unitivo, a ilusão dualista, geradora desse desejo, na sabedoria e felicidade inerentes à experiência do vazio, onde, pela reunião das energias subtis do corpo psco-físico, se dissipam todos os véus emocionais e cognitivos. Reconduzindo ao estado primordial da consciência, o desejo auto-liberta-se, consumindo-se."

Anónimo disse...

Assim, não será afinal o sexo a dança primordial originária de todas as outras danças resultantes e resultadoras, cuja pulsação rítmica nos conduz à recordação da realidade suprema? Não será, então (e aproveito para enviar saudações à minha mestre Zoria Shikhmourzaeva), a pulsação rítmica (e não a melodia!) o eixo primordial da música?... Havendo, a meu ver parecenças entre ritmo e samboghakaya, melodia e nirmanakaya, dharmakaya e silêncio... Não será uma pulsação rítmica (no meio de muitas) o ponto em que instante é momento, dharmakaya é samboghakaya, nada é tudo, Deus é Espírito Santo, sendo o Filho a música? Não serão o intérprete musical e o seu instrumento amantes, cujo jogo os conduz à fusão com o todo e à redução ao nada? Não será uma orquestra e o seu público inicialmente um conjunto de seres isolados que ao praticarem música -sexo com sons - juntos orgiasticamente se fundem no belo?

Paulo Borges disse...

Caro Kunzang Dorje, a todas essas questões respondo: é bem provável que sim! Grato por trazer estes temas que me são muito caros.

Abraço

Anónimo disse...

Julgo que a iluminação é a visão permanente das coisas nos seus três estados (kayas) inerentes. Se, por um lado, tudo é vazio (dharmakaya), por outro lado, esse vazio é energia (sambhogakaya) que ao surgir do nada é o uno fenomenológico ou, por outras palavras, a aparência das coisas (nirmanakaya).
Creio que a diferença da visão entre um místico e um materialista é que tendo o primeiro uma percepção holística do todo tridimensional, o segundo apenas consegue percepcionar o mundo através dos sentidos, estando este enclausurado pelos grilhões do tempo e do espaço na contemplação do mundo. Diz-nos São João que

«No princípio havia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que tudo começou a existir.»

Julgo que para um místico não há princípio nem fim pois o instante é a fusão do princípio com o fim; assim, para ele faria mais sentido dizer que

«No Princípio há o Verbo; o Verbo está em Deus; e o Verbo é Deus. No Princípio Ele está em Deus. Por Ele é que tudo existe»;

todavia, a ideia de Princípio dá a sensação de separação... Talvez o místico retirasse Princípio... Ficaria

«Há o Verbo; o Verbo está em Deus; e o Verbo é Deus. Ele está em Deus. Por Ele é que tudo existe».

"Tudo existe" não intrinsecamente, pois a sua causa de existência é o Verbo; o Verbo é Deus... e aqui, julgo que um místico correlacionaria Deus com Dharmakaya, Verbo com Sambhogakaya e "Tudo o que existe" com Nirmanakaya.
Desta forma, tudo é criação e destruição permanente; tudo é nascimento e morte; tudo é vida e morte.

Julgo que a matéria de que nós somos feitos é como uma lâmpada tremeluzente... sempre a acender e a apagar e isto a uma velocidade tal que os nossos sentidos não se apercebem do processo...

O homem ancestral era quadrúpede e vivia nas árvores; alimentava-se de folhas, frutos, raízes... Devido a alterações climatéricas, a floresta diminuiu, escasseando cada vez mais o alimento; desceu das árvores, tornou-se bípede e passou a alimentar-se de outros animais; isso fê-lo tomar consciência de si e da natureza hostil que se estendia à sua volta; com o tempo, desenvolveu formas de se re-ligar à natureza como foi o sacrifício e a partilha de alimento com os deuses; através da razão inventa formas de dominar o outro e a natureza; chegará um dia, no futuro (do qual ele já sente saudades;)) em que através de técnicas meditativas conseguirá libertar-se do corpo e passará de homo sapiens para omnisapiens, o ser omnisciente. Porquê? Porque durante a sua evolução, o homem tem conseguido canalizar cada vez mais a energia do chakra Base para o chakra da Coroa... Conseguiu-o quando se tornou bípede, quando desenvolveu a linguagem e o pensamento racional e no futuro conseguirá libertar a energia para fora através do chakra da coroa. Julgo que muitos mestres já o conseguiram e ensinam até os seus discípulos a fazê-lo. Um exemplo disso é a prática budista de Powa, onde há relatos de praticantes que ficam com um buraco no cimo do crâneo devido à passagem da energia para o exterior...

Anónimo disse...

Abraço, Paulo:)

Paulo Borges disse...

Caro Kunzang, agora não tenho tempo para explicar melhor, mas não estou muito de acordo com essa visão evolucionista da origem do homem. Várias tantras budistas falam da humanidade primordial como tendo um corpo subtil, luminoso e não sexuado, semelhante aos deuses, não limitado pelo tempo e pelo espaço. Teria sido a ingestão de alimento grosseiro que daria origem ao corpo físico denso que agora temos, por actualização de tendências kármicas não purificadas.

Anónimo disse...

compreendo... segundo a tantra, não teria havido nem há evolução porquanto isso implica uma história sendo estes característicos da dimensão grosseira... a humanidade então continua e será sempre luminosa e assexuada, mas por estar coberta por véus cármicos tem um corpo grosseiro derivado do alimento grosseiro que ingere. Suponho que o corpo grosseiro que nos envolve é um estado energético mais 'denso' com ondas de grande amplitude, estado esse que encobre estados mais subtis de energia não limitados pelo tempo e pelo espaço...
Será que o Paulo, quando tiver tempo, poderia evocar o nome de uma tantra que aborde estas matérias?
grato

Paulo Borges disse...

Caro Kunzang, veja o tantra "Lamp Thoroughly Illuminating the Presentation of the Three Basic Bodies – Death, Intermediate State and Rebirth", comentado em Lati Rinbochay / Jeffrey Hopkins, "Death, Intermediate State and Rebirth in Tibetan Buddhism", prefácio de S. S. o Dalai Lama, Londres, Rider and Company, 1979, p.29. Cito-no no estudo "A Morte no Budismo", que pode encontrar no meu site.

Abraço